• Edição 221
  • 16 de setembro de 2008

Olho no Olho

Mãe: a número um

Camilla Muniz

imagem olho no olho

Pesquisa realizada recentemente pelo Instituto Datafolha concluiu que as mães são as mais queridas pelos filhos dentro do ambiente familiar. O estudo revelou que a figura materna é a primeira associada pelos jovens quando se trata de amor e confiança, dois quesitos considerados importantes para constituição das relações familiares.

O Datafolha pediu que os participantes da pesquisa atribuíssem uma nota, numa escala de 0 a 10, ao amor e à confiança que sentem em relação a cada um dos familiares. As mães obtiveram notas altas nas duas avaliações, recebendo médias 9,7 e 9,4, respectivamente. Apesar da preferência declarada, avós e irmãos também foram lembrados e conseguiram bons conceitos. Já os pais foram os que auferiram as menores notas quando comparados aos outros membros da família.

Para apontar as características sociais refletidas pelo estudo e analisar os resultados da pesquisa, o Olhar Virtual entrevistou Luciana Ferreira Monteiro, psicóloga da Maternidade-Escola da UFRJ, e Ludmila Fontenele Cavalcanti, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ.

 

Luciana Ferreira Monteiro
Psicóloga da Maternidade-Escola da UFRJ

É difícil avaliar a pesquisa em si, já que tivemos contato apenas com os resultados. Os dados não nos trazem muitas surpresas. A mãe é um importante objeto de amor, geralmente o primeiro objeto de amor. É ela que, normalmente, oferece os cuidados iniciais necessários à sobrevivência e à constituição psíquica do bebê. Esse cuidado vai sendo particularizado, vai decodificando as necessidades do bebê e nomeando-as, colocando-o no campo da demanda (demanda de amor). Surge, assim, a possibilidade de emergir o sujeito do desejo, o sujeito desejante.

Gradualmente, o bebê vai descobrindo novas pessoas que vão se tornando novos objetos amorosos. O pai entra como uma importante e querida figura amorosa que terá um importante papel: a função de introduzir a socialização, a lei que fará a separação necessária para que a criança possa se desenvolver.

As diferenças no relacionamento mãe-filho e pai-filho se devem aos lugares ocupados por cada um na trama de desejo familiar. O relacionamento entre os membros da família se dará e será alterado de acordo com a formação familiar (por exemplo, o fato e a época da chegada de um novo membro na família trará conseqüências). Não é possível estabelecer um padrão ou uma receita que se aplique às relações familiares. O que há é a possibilidade de compreender e intervir, quando necessário, na particularidade de cada trama familiar.

Talvez possamos marcar diferenças não no relacionamento, mas na função da relação mãe-filho e pai-filho. Podemos atribuir a função de viabilizar a constituição do sujeito à mãe (ou a quem ocupa essa função) e ao pai (ou à sua função trazida através do discurso materno) introduzir o filho na socialização, barrando-o com a lei que lhe permitirá ser um sujeito desejante.

A mãe é geralmente aquela que introduz a criança no mundo da linguagem — e esperamos que também no mundo da simbolização — através de seus cuidados e de sua fala. Essa fala, gradualmente, traduzirá as necessidades fisiológicas do bebê, transformando-as em desejo de algo mais, que, em última instância, será desejo de amor e de completude. Essa completude refere-se à alucinação, pelo bebê, de um momento mítico de satisfação plena. A isso se segue a percepção de que o objeto que causaria essa satisfação não está ali. Começa, então, uma série de movimentos internos e externos em busca do objeto que, se imagina, trará essa satisfação perdida. Esse é o início de todo o movimento desejante do ser humano. É o que nos faz comer, andar, buscar relacionamentos, fazer projetos de vida. Assim, esse papel da figura materna tem sua importância decisiva para a vida posterior do sujeito, sua constituição psíquica e as relações que ele estabelece com o mundo.

É importante marcarmos que a função materna não se confunde com a mãe ou sua figura. Essa função de figura materna pode ser desempenhada por outra pessoa que não propriamente a mãe biológica, construindo da mesma forma esse modelo psíquico. Caso contrário, teríamos situações de risco na sociedade atual, onde as mães trabalham muito, ficando a maior parte do dia longe de seus filhos.

Quando pensamos no modelo familiar da sociedade ocidental atual, percebemos que cada vez mais a figura do pai (e não função paterna, que inclui uma função específica na constituição psíquica) parece se distanciar da convivência familiar. Isso pode acontecer por vários motivos: o pai é desconhecido, o pai pode trabalhar muito e não passar o tempo que gostaria com os filhos (com qualidade de convivência), o pai pode não se envolver efetivamente e afetivamente na vida dos filhos, o pai pode se divorciar da mulher e dos filhos, para citar alguns exemplos cotidianos. Isso pode contribuir para explicar essas notas mais baixas. Em contrapartida, há um grupo crescente de pais que passa a valorizar e a lutar para participar mais da vida dos filhos, aumentando a possibilidade de um maior estreitamento dos laços afetivos com eles. Pode ser que, daqui a algum tempo, essa pesquisa mostre uma nova tendência.

Os avós, por sua vez, cada vez mais auxiliam os filhos na criação dos netos, no sustento — inclusive financeiro — da família como um todo. Acabam se tornando figuras mais presentes no dia-a-dia dos netos, assumindo funções e cuidados que caberiam aos pais. Essa disponibilidade de tempo e maior proximidade afetiva podem torná-los pessoas importantes afetivamente.

Os irmãos são muito importantes na trama familiar. Ao mesmo tempo em que movimentam sentimentos de ciúmes e rivalidades, são figuras que ajudarão o sujeito em sua constituição psíquica, gerando identificações que ajudarão na sociabilidade. Além disso, podem ser cúmplices de vivências e sentimentos na relação com os pais, sendo também presenças constantes na vida e acontecimentos cotidianos, partilhando muitas das suas histórias.

Apesar de, historicamente, a figura paterna estar associada ao chefe de família e, portanto, à autoridade máxima dentro do lar, creio que essa imagem não é capaz de criar barreiras entre pais e filhos quando se trata de amor e confiança. A questão não é a autoridade do pai, mas como ele exerce sua autoridade em relação aos filhos e com cada um dos filhos. Essa autoridade é importante e necessária, podendo ser exercida com amor, numa relação de confiança. Deve aparecer no discurso materno, viabilizando a função paterna, função de lei. O que não pode acontecer é a autoridade da figura paterna ser confundida com autoritarismo ou agressividade, não devendo aparecer de forma destituída e denegrida no discurso da mãe. Nesses casos, sim, é possível que seja erguida uma barreira na relação afetiva, provocando esvaziamento e empobrecimento da relação ou até mesmo a eclosão de um quadro patológico.

Também acredito, empiricamente, que as características ressaltadas pelos resultados refletem uma realidade mais extensa, não restrita apenas à sociedade brasileira. Em todo o mundo, fala-se muito das mães. A mãe italiana e a mãe judia podem servir de exemplo. Apesar de brincadeiras e críticas, elas se destacam por seus excessos de cuidado, talvez representando inconscientemente uma tendência mundial de identificação maior com a figura materna.

Vale frisar que qualquer movimentação na trama familiar faz com que se abram novas possibilidades de configuração de relações. No caso de separação do casal em que os filhos ficam o pai, a relação entre a mãe e os filhos vai depender de uma série de variáveis e de como essas mudanças foram significadas por cada um.

A mãe é uma figura que ocupa um lugar especial no psiquismo das pessoas. Sua morte normalmente gera um grande impacto na família e, principalmente, nos filhos. O comportamento de cada filho após a perda da mãe pode sofrer alterações significativas, passando desde um luto considerado normal até comportamentos patológicos. Essas alterações vão sofrer a influência de uma série de variáveis individuais, situacionais, sociais, dentre outras. O que vai determinar que as alterações sejam normais ou patológicas, provisórias ou permanentes será a estrutura psíquica de cada um e o significado que cada um dará a essa perda.

Ludmila Fontenele Cavalcanti
Professora da Escola de Serviço Social da UFRJ

Ao traduzir o amor e a confiança atribuídos às mães comparando-os aos demais membros da família, pode-se correr o risco de reforçar a reprodução de estereótipos de gênero.

A definição do gênero feminino tradicionalmente é referida à esfera familiar e à maternidade, enquanto a referência fundamental da construção social do gênero masculino é sua atividade na esfera pública e concentradora dos valores materiais, o que, socialmente e por convenção, o institui como provedor e protetor da família. O conceito sociológico de gênero vem se definindo na crítica ao entendimento essencialista de que a condição de ser mulher ou homem está fixada na diferença sexual. Gênero não é a diferença sexual em si mesma, mas a representação dessa diferença no âmbito do imaginário e do desempenho social.

A confiança e o amor, elementos que nem sempre fizeram parte da maternidade, se pensados como atributos intrínsecos a essa experiência, impõem às mulheres determinadas obrigações que, além de naturalizar papéis essenciais à divisão de gênero na sociedade, excluem a participação dos homens do cuidado com os filhos. A maternidade pode ser entendida na articulação que se estabelece entre a condição orgânica feminina e a condição social de gênero, sujeita à variabilidade histórica e às condições materiais em que vivem as mães.

Diferentes pesquisas têm demonstrado que as relações de gênero na família mantêm na natureza de sua interação o princípio tradicional da divisão sexual do trabalho — mulheres e homens com papéis diferenciados — e a predominância do padrão de domesticidade, que confere desvantagens às mulheres na vida social. O trabalho doméstico, aí incluído o cuidado dos filhos, é compatibilizado com o trabalho público pelas mulheres de diferentes classes sociais. Nas situações em que a mulher depende economicamente do provedor, agrava-se a invisibilidade do trabalho doméstico por ela exercido.

A construção de valores e práticas mais igualitárias implica não apenas na participação na renda familiar, mas no compartilhamento do cuidado. Essa compreensão, por um lado, pode influenciar as representações sociais sobre o gênero feminino e, por outro, as ações das políticas públicas voltadas para a proteção à maternidade.