• Edição 216
  • 12 de agosto de 2008

Olho no Olho

Mudança de sexo será financiada pelo SUS

Camilla Muniz

imagem olho no olhoNo último dia 5 de junho, José Gomes Temporão, ministro da Saúde, anunciou a portaria do Ministério que permitirá que o Sistema Único de Saúde (SUS) financie cirurgias de mudanças de sexo para a população transexual. Apesar de ainda não ter sido publicada no Diário Oficial da União (DOU), a portaria prevê que as cirurgias sejam inseridas em um processo transexualizador que inclui a realização de avaliações clínicas e psicológicas com o indivíduo que desejar se submeter à operação. Dessa forma, o acompanhamento oferecido por equipes multidisciplinares ao transexual durante o período de dois anos teria o objetivo de verificar se o interessado está apto a enfrentar psicologicamente a mudança de sexo. Além disso, a norma determina ajuda médica após a cirurgia para auxiliar na readequação sexual.

A medida — divulgada durante a I Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, que aconteceu em Brasília entre os dias 5 e 8 de junho — vem sendo considerada um grande avanço no processo de reivindicação dos direitos LGBT. Hoje, no Brasil, procedimentos cirúrgicos para mudança de sexo são realizados apenas em clínicas particulares e em alguns hospitais universitários, como o Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF/UFRJ). Após a oficialização, a portaria possibilitará a ampliação da oferta das cirurgias, além da redução de custos para o paciente.

Para discutir quais as implicações da medida e os benefícios que ela trará aos transexuais, o Olhar Virtual conversou com Maria das Dores Campos Machado e Luciana Zucco, professoras da Escola de Serviço Social, e com Diego Cotta, graduando do 8º período de Jornalismo da Escola de Comunicação e coordenador da III Semana da Diversidade Sexual da UFRJ, que ocorrerá nos dias 6, 7 e 8 de outubro no Fórum de Ciência e Cultura.

 

 

Maria das Dores Campos Machado e Luciana Zucco
Professoras da Escola de Serviço Social da UFRJ

Do ponto de vista da Sociologia, as cirurgias de mudança de sexo podem ser entendidas como um fenômeno que está vinculado ao desenvolvimento de novas tecnologias que ampliam não só a capacidade de intervenção nos corpos, mas também uma crescente medicalização da sexualidade humana. Essa contextualização é importante para se entender uma visão mais realista e crítica dos processos sociais em curso. O desenvolvimento científico fomenta novas necessidades nos sujeitos sociais e introduz novos desafios e problemas éticos na sociedade. Os relatos dos que buscam a cirurgia de readequação sexual (transgenitalização) expressam um grande desconforto com o corpo e um conflito entre a subjetividade e a anatomia. No campo biomédico, este fenômeno — quando acompanhado de uma forte rejeição aos órgãos sexuais — tem sido classificado como uma “doença”, denominada Transtorno de Identidade de Gênero (TIG). Alterando a “norma” estabelecida pela sociedade moderna, a pessoa que apresenta transtorno de identidade expressaria a não adequação entre o sexo biológico e o gênero, logo, o não enquadramento à lógica binária do feminino e masculino. Nessa perspectiva, se poderia pensar que um dos motivos seria esse descompasso entre a forma corpórea e os desejos dos indivíduos no sentido de sua “adequação” aos padrões estabelecidos. Desejos que vão além da esfera erótica e resultam de diferentes fatores, inclusive culturais.

Afinal, vivemos numa sociedade que dá uma grande importância ao culto do corpo.

Nesta perspectiva construtivista, os processos singulares e diversos de subjetivação na transexualidade não estão necessariamente fixados ou rigidamente informados pelos padrões femininos e masculinos. E, nesse sentido, um dos motivos para o transexual buscar ajuda médica seria a possibilidade de se construir nas relações sociais, inclusive corporeamente, uma vez que a cirurgia é apenas um dos momentos de um longo processo de autoconstrução, que tampouco se encerra nela.

As avaliações psicológicas aparecem nesse processo como uma forma de se conhecer os sentimentos, as formas de sofrimento e as expectativas dos sujeitos sociais e realizar, por assim dizer, uma triagem entre aqueles que podem lidar com seu sofrimento nas sessões de psicoterapia e os que não conseguem respostas satisfatórias nesse tipo de acompanhamento e que se acredita necessitam de uma readequação sexual. Como se pode perceber, se esse procedimento cria novas possibilidades aos indivíduos na contemporaneidade, como, por exemplo, se sentir melhor com seu corpo, por outro, expressa uma expansão da capacidade de controle não só dos médicos, como também dos psicólogos e demais especialistas sobre os corpos e a sexualidade humana. E parece que essa dimensão nem sempre é examinada com o cuidado que merece.

Nesse sentido, se por um lado garantem acesso à assistência à saúde, através do processo transexualizador, que inclui o acompanhamento de equipe multidisciplinar por dois anos, por outro coloca a transexualidade como patologia a ser corrigida, e de alguma forma não a retira da periferia social em que se encontra. É contraditório porque congrega possibilidade de exercício de cidadania e exclusão social e sexual em uma mesma dinâmica. Com isso não estou desconsiderando as conquistas do movimento LGBT e a visibilidade nacional da transexualidade que o procedimento técnico impulsionou com o anúncio do Ministro Temporão de o SUS estabelecer um protocolo de assistência. Até porque esta é uma das etapas para que a pessoa tenha acesso ao seu direito sexual. Mas é preciso atentar para o poder que é dado ao diagnóstico e aos profissionais, que passam a decidir sobre a construção do outro, em função de uma necessidade técnica e operacional do sistema. Em nada isso lembra o conceito ampliado de saúde da VIII Conferência Nacional de Saúde (1986).

A intervenção, por mais radical que seja, é só mais um passo no processo de construção de uma nova identidade de gênero. Muitos indivíduos do sexo masculino que não passaram pela cirurgia dizem se sentirem mulheres e o contrário também ocorre. A identidade de gênero está relacionada com o sexo, mas não encapsulada por ele. Além disso, se instaura um debate público que possibilitará problematizar valores ancorados em uma moral religiosa ou em uma lógica patriarcal, ainda vigente na sociedade ocidental contemporânea. Com isto existe uma tendência de se ampliarem as críticas ao essencialismo que sustenta os discursos das instituições culturais predominantes nestas sociedades. Se isto ocorrer, teremos também a possibilidade de fortalecer, a médio e longo prazo, nos diferentes segmentos sociais, a perspectiva que interpreta as expressões das diversas subjetividades como formas sociais e não como patologias a serem corrigidas.

Essa medida do Ministério da Saúde democratiza o atendimento aos transexuais e pode reduzir os riscos a que se expõem aqueles indivíduos que se encontram insatisfeitos com o seu corpo e buscam expedientes pouco confiáveis para alterá-lo. Expedientes que vão da automedicação e aplicação de silicone à automutilação. Mas é importante reforçar que a cirurgia é só uma fase no sofrido processo de readequação sexual e construção de uma nova identidade de gênero. Não se pode esquecer a dificuldade para alterar a identidade civil e — o mais sério e pouco falado — que a cirurgia só pode resolver algumas das insatisfações dos transexuais e a sociedade terá que lidar com as frustrações e os novos problemas que certamente surgirão dessas novas possibilidades de moldar os corpos. Deve se registrar ainda que a implementação desta nova medida ficará comprometida se o governo federal não investir mais nos hospitais universitários e não melhorar o sistema de saúde como um todo, garantindo a qualidade do serviço oferecido.

De forma sintética, poderia se dizer que a medida traz para o transexual a possibilidade do exercício do direito sexual como ação pública e como uma das dimensões dos direitos humanos, que se amplia, com isso, a outros segmentos sociais. Para o Movimento, o reconhecimento do seu protagonismo na esfera pública e mais uma conquista social. Para a sociedade, a possibilidade de construção de uma cultura de aceitação do diverso e de rever seus índices de violência, uma vez que é mais um dos passos de implementação do ‘Brasil sem Homofobia’.

A cirurgia em si não é garantia de mudança de status na sociedade. A intervenção ajuda na reconstrução da auto-estima do transexual e é isso que pode alterar o conjunto de relações sociais em seu entorno. Pode, pois não se tem a garantia de que isso vá acontecer. De qualquer maneira, enquanto se regulamenta este procedimento cirúrgico, o governo federal está estabelecendo novos marcos para as ações dos diferentes segmentos sociais, sejam eles os que compartilham de uma visão sexista e heterossexual do mundo, sejam aqueles que se propõem a construir uma ordem social com novas bases.

Diego Cotta
Graduando do 8º período de Jornalismo/UFRJ e Coordenador
da "III Semana da Diversidade Sexual da UFRJ"

Essa medida possibilita pensar no indivíduo-trans, em seu aspecto bio-psico-social, para caracterizar os verdadeiros princípios da universalidade, integralidade e equidade da saúde pública no Brasil. Para atingir esses princípios, precisamos respeitar as diferenças, como, por exemplo, os travestis e transexuais.

Definiremos as (os) transexuais como pessoas que não se identificam com seus genitais biológicos (e suas atribuições sócio-culturais), podendo através da cirurgia de transgenitalização exercer suas identidades de gênero em consonância com seu bem estar bio-psico-social e político. Em novembro de 1997, o Conselho Federal de Medicina (CFM), através da Resolução 1482/97, aprovou a realização de cirurgias de transgenitalização nos hospitais públicos universitários do Brasil. Em 2002, a Resolução 1652 do CFM revogou a Resolução 1482/97 que autoriza a cirurgia de transgenitalização a título experimental.

Nesta segunda Resolução, "considerando a adequação da avaliação diagnóstica e o bom resultado estético e funcional das neocolpovulvoplastias ou procedimentos complementares", fica resolvido que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independentemente da atividade de pesquisa; apenas a neofaloplastia permanece condicionada à prática em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa.

A confirmação do diagnóstico de transexualismo torna-se condição do tratamento, sendo que a cirurgia só poderá ser realizada após acompanhamento psiquiátrico e psicológico por, no mínimo, dois anos. Assim os transexuais têm a princípio como acesso à saúde, a porta da Saúde Mental. E esse passou a ser uma das grandes reivindicações do Movimento LGBT e, em especial dos transexuais. A construção de um espaço de acolhimento e de cuidado para estes pacientes, confirma que existe um despreparo completo por parte dos profissionais em Saúde Mental para o atendimento a essa parcela da população. Muitas vezes, este segmento chega à Saúde Mental com um elevado grau de dor psíquica e com práticas de suicídios ou mutilações genitais. Os profissionais de saúde que abordam esta questão da transexualidade relatam que haveria uma incoerência entre sexo e gênero, considerado-a um "transtorno de identidade", dada a não conformidade entre sexo biológico e gênero.

Por essas razões, para além da questão da legitimidade da lei, que acho indiscutível, é necessário que se produza políticas públicas que complementem a cirurgia de redesignação de gênero e todo o processo transexualizador no SUS, com o intuito de efetuar a capacitação de profissionais da área ao lidar com pacientes transexuais, que muitas vezes são tratados com discriminação e preconceito.