• Edição 211
  • 08 de julho de 2008

Entrelinhas

Conquistadores e negociantes

Camilla Muniz

capa do livro

Com o objetivo de revisar paradigmas e construir um novo viés histórico para temas e problemáticas relegadas a segundo plano pela historiografia brasileira, o grupo de história econômica do Programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) adotou nossa história colonial como objeto de estudo. Os intensos debates produzidos com a intenção de ampliar as perspectivas que permeiam a compreensão da história do Brasil resultaram em Conquistadores e Negociantes: histórias de elites no Antigo Regime nos trópicos. América lusa, séculos XVI a XVIII, livro que reúne artigos escritos tanto por docentes quanto por alunos.

Organizado pelos professores João Fragoso, Antônio Carlos Jucá de Sampaio, ambos da UFRJ, e Carla Maria de Carvalho Almeida, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o livro aborda as principais características das elites coloniais que se constituíram no Brasil e faz uma reflexão acerca das transformações políticas, sociais e econômicas que esses grupos engendraram na história.

Em entrevista ao Olhar Virtual, Antônio Carlos Jucá analisa os principais aspectos discutidos na obra e ressalta a importância dos estudos relativos aos grupos dominantes para o desenvolvimento de uma visão mais ampla sobre a sociedade brasileira.

Olhar Virtual: Como surgiu a idéia de reunir em um livro os temas discutidos pelo grupo de história econômica do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ? Por que a trajetória das elites coloniais é um objeto de estudo tão rico para este Programa de Pós-Graduação?

O Programa de Pós-Graduação em História Social tem se notabilizado, nos últimos anos, por uma profícua produção na área da história colonial, cuja principal conseqüência tem sido a revisão de antigos paradigmas acerca de nosso passado, sobretudo no que tange à relação metrópole-colônia. Na verdade, hoje sabemos que a análise de tal relação nem de longe explica o nosso passado colonial, já que, além da metrópole, o Brasil possuía relações com outras regiões do Império, como a África e a Ásia portuguesas. Nesse contexto, o estudo das elites se mostra extremamente importante por nos permitir conhecer melhor essas diversas conexões. Outro aspecto importante é o ganho heurístico que temos com o estudo das elites. Como estamos falando das elites sociais, ou seja, dos grupos que de fato comandavam a sociedade colonial, entendê-los nos ajuda a entender melhor o funcionamento dessa sociedade como um todo.

Olhar Virtual: O título do livro faz clara referência às elites dos trópicos. Quais as principais peculiaridades dessas elites?

A principal peculiaridade é, sem dúvida, a enorme plasticidade destas elites. Estamos falando de grupos que se constituíram enquanto elite nos trópicos e graças a eles, ou seja, indivíduos quase sempre de uma origem modesta na Europa, mas que conseguiram ascender no Novo Mundo. Essas elites, embora tentassem, nunca conseguiram se cristalizar em um estamento, ou seja, em um grupo separado e com privilégios demarcados em relação ao resto da sociedade. O resultado foi que esses grupos passaram por contínuas alterações, com a entrada e a saída contínua de seus membros. O que não mudou ao longo de toda a história do Brasil é que, independentemente de sua composição, essas elites sempre conseguiram controlar a principal parte da riqueza produzida pelo conjunto da sociedade.

Olhar Virtual: Que aspectos influenciaram a seleção dos textos que foram publicados em "Conquistadores e negociantes"?

Buscamos selecionar autores com uma reflexão importante acerca do tema "elites coloniais", mas que ao mesmo tempo agregassem novas perspectivas ao mesmo.

Olhar Virtual: Os artigos presentes no livro foram redigidos apenas por docentes ou também participam como autores os alunos da pós-graduação? Participaram professores e alunos do PPGHIS, além de professores de outras instituições, como Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

Olhar Virtual: Qual a abordagem específica de seu artigo Famílias e negócios: a formação da comunidade mercantil carioca na primeira metade do setecentos?

O tema central do artigo é a análise do surgimento dessa comunidade mercantil. No final do século XVII, embora tivéssemos comerciantes importantes no Rio de Janeiro, eles não se constituíam em uma comunidade, se entendermos essa como certa identidade comum entre seus membros. Já se olharmos para a segunda metade do século XVIII, vemos esse grupo claramente constituído, lutando por seus interesses frente à Coroa portuguesa e contra outros grupos sociais igualmente poderosos. O que o artigo tenta, em resumo, é analisar como essa transformação se deu, já que ela tem conseqüências profundas para a história colonial.

Olhar Virtual: Por que as categorias menos favorecidas têm mais espaço do que as elites na historiografia brasileira?

Aqui há a combinação de duas tradições distintas. Por um lado, o ranço de certo marxismo (mas não do marxismo em si, até porque me considero um marxista) que via o estudo dos "explorados" como o único legítimo. A eles devia ser dada a voz que as elites lhes tinham roubado. Essas, por sua vez, eram vistas como um conjunto de abutres, cujo estudo significava necessariamente a afirmação de suas maldades. Esse marxismo vulgar esqueceu-se somente que Marx escreveu "O Capital" e não "O Trabalho". Ou seja, ele sabia, melhor do que ninguém, que para conhecer uma sociedade era preciso estudar, em primeiro lugar, seus mecanismos centrais de produção e reprodução. Para isso, a melhor via é, naturalmente, o estudo de seus grupos sociais dominantes.

A segunda tradição a que me refiro é a da "Escola dos Annales" francesa, sobretudo a de sua segunda geração, profundamente marcada pelo trabalho de Fernand Braudel. Nesta perspectiva o estudo das elites confundia-se com uma história política antiga, baseada na biografia dos atores políticos. Segundo esta visão, mais importante do que estudar Luís XIV, por exemplo, era debruçar-se sobre os 16 milhões de camponeses que existiam no seu reinado. Não havia espaço, aí, para uma história social das elites.

Olhar Virtual: Qual a importância da compreensão da história das elites para um entendimento mais amplo da história do Brasil, inclusive nos dias de hoje?

A defesa que faço sobre a importância do estudo das elites não significa, é claro, negar a importância de se estudar os escravos ou os operários, por exemplo. Fazê-lo seria trocar uma miopia por outra. Eu mesmo tenho me dedicado em diversos momentos de minha trajetória profissional ao estudo da escravidão, além de orientar trabalhos sobre o tema. O importante é entender que o estudo de todos os grupos sociais se faz necessário caso queiramos ter uma visão o mais complexa possível da sociedade, seja ela a colonial ou a atual. E se a história das elites se faz hoje mais premente, é porque é sobre ela que menos temos nos debruçado.