• Edição 201
  • 29 de abril de 2008

Entrelinhas

Reinvenções da resistência juvenil

Julia Vieira

capa do livro

Professor da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), João Freire Filho é especialista na análise de estereótipos e sua desconstrução a partir da observação de casos específicos e utilização de pressupostos teóricos.

No livro Reinvenções da resistência juvenil - Os estudos culturais e as micropolíticas do cotidiano, João Freire debate os estudos culturais, além de atualizar e dar corpo às teorias sobre juventude. Nesta obra, João Freire, dentre outras coisas, aborda os caminhos percorridos para a criação de diversos conceitos sobre o mundo dos adolescentes.

Olhar Virtual: Como surgiu a idéia de escrever um livro abordando os estereótipos acerca da juventude?

Esse livro é resultado de uma pesquisa que realizo há cerca de três anos; eu tinha interesse em ver como a juventude e a adolescência estavam representadas na mídia, partindo do pressuposto de que não são fenômenos de ordem natural nem biológica.

Cada momento histórico tem concepções diferentes de como o jovem e o adolescente são encarados. O que é ser jovem, afinal? Essa indagação me deixou interessado em investigar a construção deste imaginário e a produção destes discursos na mídia.

Olhar Virtual: Como foi o processo de pesquisa para o livro?

Tudo começou com uma pesquisa sobre a revista Capricho de como era construída a garota “capricho”, quais os atributos necessários para se enquadrar nos padrões sociais e quais formas de conduta adotadas. É importante ver como isso se articula com padrões e discursos de mercado e da ciência. Esse foi o projeto inicial. No decorrer da pesquisa resolvi fazer um livro mais abrangente no aspecto teórico. Parti do estudo de caso da “capricho” e busquei conectá-lo a estudos teóricos e mostrar o imaginário acadêmico sobre a adolescência e juventude dentro da tradição dos estudos culturais.   

Durante a pesquisa foi recorrente a associação entre os termos juventude e resistência. Deixando um pouco de lado as manifestações da mídia, procurei nos estudos teóricos desta linha de pesquisa disciplinar que analisa o tipo de concepção de juventude e de que maneira se dá a ênfase entre juventude e resistência. Os ingleses passaram a analisar a resistência cultural e política, os primeiros movimentos de contracultura abordando os punks, sobre fãs já nos anos 90 para finalmente chegar a esse imaginário em torno da adolescência pós-feminista, ponto coincidente com a minha pesquisa da “capricho”. Foi mais ou menos esta a trajetória para atrelar a representação da Academia às representações da mídia.

Olhar Virtual: O tema juventude é muito abrangente. Quais são os assuntos específicos tratados neste livro?

O primeiro capítulo trata dos discursos de subcultura dos anos 1970 e como isso se desenvolveu até chegarmos aos discursos de tribos (atualmente bastante em voga). O segundo capítulo fala sobre fãs e sua resistência, mudando a antiga visão do fã passivo. Os fãs agora são criativos, inventivos, resistentes às normas e às estruturas de poder. O terceiro capítulo é sobre a adolescente pós-feminista, teorizada em discursos culturais e nos discurso da revista Capricho.

Olhar Virtual: O que te atraiu na revista Capricho?

Este imaginário: da jovem que resiste ao modelo de uma feminilidade mais ortodoxa, que tem idéia de individualidade, de construir a si mesma, de ter liberdade e livre escolha dentro do mundo do consumo. O que me atraiu foi o slogan da Capricho: “Seja autêntica, seja você mesma!” Como uma revista que fala de tantas normas comportamentais e de conduta tinha um slogan como esse e como esse slogan, dentro daquela revista, faz sentido?

Por mais contraditório que possa parecer, o slogan tem alguma lógica se partirmos do princípio que só se pode expressar a individualidade e autenticidade através do consumo. A revista dá as dicas, atrela determinados produtos e estilos de consumo a formas de viver e deixa para a leitora a escolha do que se identifica mais com a sua personalidade. Mostramos nossa personalidade e subjetividade através de mercadorias, de adoção de estilos e vida e práticas de lazer. A expressão dessa subjetividade pressupõe uma relação criativa e inventiva com o universo do consumo, o universo dessas mercadorias específicas.

Olhar Virtual: Você diz que a Capricho tem um discurso pós-feminista. O que caracteriza este discurso?

O discurso do pós-feminismo é assim: as feministas precisaram lutar para afirmar a liberdade da mulher na esfera social e alcançar igualdades de direito político. O discurso ideológico pós-feminista pressupõe que estas conquistas já foram efetivadas. No editorial da Capricho isso fica muito claro: ”Nossas mães lutaram por aquelas bandeiras, mas agora a luta está voltada para a liberdade pessoal: ter autonomia. Essas conquistas básicas como maior espaço no mercado de trabalho, mais liberdade no âmbito doméstico, já tivemos. Temos que lutar agora é pela livre expressão.” Esta livre expressão simboliza a criação de um estilo de vida próprio, único, baseado, é claro, nos modelos que são divulgados pela própria revista que dita o que é adequado, o que é normal e estabelece os limites do consumismo normal, do consumismo consciente, do consumismo patológico, da magreza modelar, da anorexia, da bulimia. A mídia é responsável por estabelecer estes parâmetros de normalidade, de dizer o que é o socialmente agradável.

Olhar Virtual: Este ano comemoram-se 40 anos de maio de 68. Os jovens tiveram uma grande importância política e social naquele momento. Quais as diferenças de estereótipos entre estes jovens e os atuais?

Existe um imaginário consolidado em relação à geração dos anos 1960, que ficou condensado na imagem da juventude de maio de 68, muito marcada pela questão da forte politização, da rebeldia, da revolta, muitas vezes enquadrada com a idéia de que era uma rebeldia politicamente informada. Como todo estereótipo, este imaginário tem o problema da generalização abusiva, que pega o comportamento de alguns e generaliza como essência da maioria. Existe uma grande idealização da consciência política daquela época e parece que todos os jovens eram politizados. Esse estereótipo muitas vezes é utilizado como contraponto para a juventude atual.

A juventude a partir dos anos 1980 foi classificada como apática e alienada ao ser comparada com a da década de 1960. Continuam surgindo, na mídia, diagnósticos de que a juventude de hoje tem uma indiferença política e, dentro da própria mídia, isso vem sendo apreciado positivamente.

O olhar nostálgico acabou. A mídia acredita que foi bom que se tenha passado por essa despolitização e isso ficou muito evidente neste episódio recente da tomada da Reitoria em Brasília. Boa parte da mídia, em matérias, reportagens e editoriais fez comparações entre os jovens de 68 e 2008, mas procurando diferenciar positivamente os jovens atuais dos de 1968. A bandeira agora não é mais por uma questão de esquerda, os jovens são agora mais pragmáticos. Em uma manchete da Veja saiu: “A geração sonhadora, mas realista”. A juventude deixou as utopias e as questões perigosas de lado e procura lutar por causas mais específicas como a Ecologia.

Nestes novos discursos, a geração de 68 não aparece mais como parâmetro ideal. Os anos 1960 foram os de um momento ideologicamente carregado. O pragmatismo dos jovens de hoje e o fato de terem deixado essas grandes questões de lado é salutar. As questões políticas ficam de fora e ganham lugar as lutas pelo imediatamente concreto. Isso ainda não é um discurso geral, mas em boa parte dos discursos midiáticos já se pode perceber essa tendência.

Olhar Virtual: O que você acha que uma adolescente, leitora da Capricho, pensaria ao ler este livro?

Eu já tive opiniões de ex-leitoras da Capricho. Muitas alunas confessaram que foram leitoras da Capricho. O que eu percebo é uma diferença de juízo entre o ponto de vista do prazer e o ideológico. O fato de se ter um maior esclarecimento ideológico não faz mudar o prazer da leitura. Essa revista serviu, para muitas delas, como guia de coisas imediatas como o que vestir, que maquiagem usar etc.

Quando elas lêem o livro e pensam a respeito, percebem como a revista influencia a ratificação de determinados modos de ser, pensar e agir. A revista é capaz de transmitir um modelo de subjetividade ideal do jovem. E isso, por incrível que pareça não fica tão claro, até porque o discurso da Capricho não é coercitivo. Nunca se usa o “Faça!” ou “Não faça!” de maneira direta. Os discursos procuram encorajar determinadas práticas, mas de maneira mais branda, dizendo “Se você tomar tal atitude, você terá isso de positivo. Mas, por outro lado, essas coisas negativas irão acontecer!”, dando sempre a idéia de uma liberdade de escolha para a leitora. Isso pode ser visto pela maneira que é conduzida a matéria, pelas celebridades que são usadas como exemplos. Algumas têm uma biografia edificante e outras seguiram determinados caminhos e não tiveram sucesso. A Britiney Spears é atualmente um contramodelo para esses pontos negativos, mas sempre de maneira sutil, nunca coercitiva. Sempre mostrando a recompensa social para determinadas atitudes e por seguir determinados padrões.

Não é um discurso contra o prazer juvenil ou contra os desejos da adolescência, pelo contrário: a favor do prazer, mas para que seja prazer tem que partir de uma escolha individual, bem informada [e a Capricho vai ajudar nisso], escolhendo o caminho certo para não se arrepender no futuro.

Neste sentido, eu vi uma coisa que me chamou muita atenção na Capricho. Era uma matéria ensinando como ser sexy sem ser vulgar. Ela te dá um parâmetro que não é da ordem da natureza nem é auto-evidente do que é ser sexy e o que é ser vulgar. O discurso diz que você tem o direito de ser sexy, de ficar com vários meninos em uma noite só [um discurso bastante novo se formos comparar com revistas juvenis para um público feminino nos anos 60 ou ainda nos anos 40 quando surgiu este tipo de publicação], mas estabelece limites: você pode ser sexy, ficar com vários, mas cuidado com as atitudes. O ideal é que você não ceda na primeira noite etc. Resista, pois assim você não cairá na vulgaridade.

Olhar Virtual: Construção da figura do adolescente: o quando e os porquês.

Numa análise da Idade Média, havia basicamente duas etapas de vida definidas: o infante, que hoje conhecemos como criança e o adulto. A partir do momento que se tivesse a mínima destreza cognitiva e motora para exercer alguma função você já era tratado e visto como adulto. Não existia essa fase intermediária de adolescência e de juventude. É óbvio que havia pessoas de 11, 12 anos, mas aquilo não era visto como uma faixa etária com características, propriedades, dilemas, direitos e deveres específicos. É importante lembrar que neste período, a expectativa de vida era baixa e a faixa etária máxima era de aproximadamente 40 anos. Assim, não dava para criar muitas delimitações nem uma espécie de moratória onde as pessoas se preparavam para a vida adulta porque esta vida acabava muito rápido.

Depois de um longo processo histórico, chegamos ao marco da “invenção” da adolescência: a virada do século XIX para o século XX. A partir daí surge uma etapa de vida qualitativamente distinta da vida humana. Esta etapa ficou muito associada no discurso de preocupação social.

O surgimento desse ator social se dá devido à preocupação com a idéia de degenerescência e regeneração. As sociedades mais evoluídas estavam entrando em processo de degenerescência e o jovem veio quase que metaforicamente como uma idéia de regeneração, de mudança social, de impulsão, de trazer aquilo que é novo para a sociedade.

Mas para que este jovem funcionasse assim ele precisava ser supervisionado, regulado, adequadamente educado, tratado e protegido. O jovem é uma conseqüência de uma série de discursos científicos e sociais que circulavam naquele momento e que procuravam dar conta deste novo personagem, desta nova categoria social.

Quando se constrói o conceito de adolescente ideal você tem imediatamente a construção do seu contraponto negativo. Toda vez que se formula uma lei você define quem são os fora-da-lei. Surge então a figura do adolescente delinqüente, que precisa de um outro tipo de supervisão, de um outro tipo de atitude de intervenção governamental e de outro tipo de correção.

Mesmo o adolescente normal, dentro da Psicologia do Desenvolvimento é cercado por crises necessárias, sua condição é semipatológica. Ser adolescente é ter crises, é adolescer [mistura-se a etimologia de duas palavras, dando a idéia de adoecer]. Passar por esta etapa pressupõe a idéia de tempestades e transtornos. Aqueles que tiveram uma socialização adequada, uma família funcional e estruturada, apoio e amor passarão por este período de turbulência e atingirão o estado de maturidade ideal, onde, supostamente, seus conflitos serão resolvidos [mesmo que nem todos os adultos tenham todos os predicados que se diz]. Os mais problemáticos e delinqüentes não conseguem passar bem por esta fase e precisam de uma correção.

Olhar Virtual: Existe diferença conceitual entre os termos adolescente e teenager?   

A figura do teenager surgiu na década de 40 e é uma figura do jovem muito associada a um ideal de mercado, preocupado com a diversão, com a satisfação pessoal, com a realização de seus desejos, com o lazer e com uma série de características que o faz parecer um ideal de mercado, uma construção que o mercado vai divulgar para a sociedade. Esse surgimento de novos personagens e novas nomenclaturas é resultado da articulação e da colisão de discursos científicos, midiáticos e mercadológicos que vão determinar o que naquele momento é visto como modelo ideal de jovem. Esses discursos vão determinar também o que é o jovem transgressor, o jovem normal, o patológico etc. É importante lembrar que o modelo de jovem, em qualquer momento histórico, não é único. Ele varia de acordo com o gênero, com a raça e com a classe social do indivíduo analisado.