• Edição 201
  • 29 de abril de 2008

Olho no Olho

Agredir é educar?

Cinthia Pascueto e Seiji Nomura - AGN/Praia Vermelha

imagem olho no olhoA abolição do uso da palmatória e a criminalização da violência doméstica contra crianças e adolescentes indicam que a punição física perde cada vez mais legitimidade como fator educador. Mas os casos constantes de agressões por parte de pais que acreditam que este é o melhor modo de ensinar a seus filhos nos impedem de pensar que a associação entre a disciplina e a violência acabou na esfera familiar.

As especialistas Ana Lúcia Ferreira, médica do Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência do Instituto de Pediatria e Puericultura Martagão Gesteira e professora da Faculdade de Medicina da UFRJ, e Lilia Guimarães Pougy, docente da Escola de Serviço Social e coordenadora de Integração Acadêmica de Pós-Graduação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ, foram convidadas pelo Olhar Virtual a esclarecer questões e dar suas opiniões sobre o assunto.

Ana Lúcia Ferreira
Professora Adjunta do Departamento de Pediatria da Faculdade Medicina da UFRJ e Médica do Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência do IPPMG/UFRJ

“A idéia de que a violência constitui uma forma adequada de educar perdeu credibilidade devido a vários estudos que comprovam que a punição corporal está associada a uma série de experiências e comportamentos negativos e indesejáveis da criança. Apesar disso, ela ainda é amplamente utilizada em diversos países, inclusive no Brasil.

A violência cometida com a justificativa de ensinar à criança pode levá-la a crer que quem ama pode bater (já que seus pais a maltratam), que essa atitude é uma forma de conseguir o que se quer (porque ela apanha por não agir como os pais desejam) e que a agressão é um comportamento legítimo e aceito nessa sociedade (uma vez que quem bate nela não é punido).

Às vezes, os filhos sentem que mereceram esses castigos, o que é ruim para sua auto-estima. A violência pode ainda provocar na criança sentimentos de medo, ansiedade e raiva, além de torná-la agressiva, o que pode interferir nas suas relações com os pais e outras pessoas.

Existem alternativas não violentas de educação a que se pode recorrer, tais como: tirar a criança do ambiente de convivência por um curto período; estabelecer regras para assuntos importantes e dizer ‘não’ de forma consistente e de acordo com o que foi estabelecido como regra. As regras devem ser claras, não devem ser mudadas sem que o jovem entenda o motivo. Ambos os pais devem seguir as mesmas normas e elas não devem ser mudadas de acordo com suas conveniências, lembrando-se que as regras podem ser flexíveis para pontos menos importantes.

A criança deve saber o que se espera dela, então é melhor estabelecer as atitudes que ela deve tomar e as que ela não deve; o mau comportamento deve receber a menor atenção possível e não deve ser recompensado (às vezes só através dele a criança consegue atenção dos pais), enquanto os comportamentos aceitáveis devem ser exemplificados e a criança deve ser ’premiada’ com atenção e elogios. É melhor criticar a atitude do quem a cometeu.

Os pais devem ser orientados sobre as etapas do desenvolvimento de seus filhos, para que não criem expectativas irrealistas sobre suas capacidades e não exijam deles mais do que podem oferecer. É importante estimular os pais a conhecerem seus próprios limites de tolerância e tentar aprender formas alternativas de lidar com os filhos, evitando recorrer à agressão.

Como as crianças imitam os adultos, o castigo físico pode ensinar a violência como solução de problemas e esse comportamento pode se perpetuar para a idade adulta. A vitimização na infância pode levar a comportamentos anti-sociais, à criminalidade e à violência.

A maior parte das punições corporais não deixa marcas no corpo da criança, dificultando a identificação desta forma inadequada de educar. Porém, a punição física pode provocar desde pequenas lesões como arranhões e hematomas até marcas de objetos usados na agressão (marcas de cinto, ferro de passar, fios elétricos), fraturas ósseas e síndromes mais complexas como a da ’criança espancada’ (com fraturas múltiplas, acometimento cerebral, lesões de órgãos internos) e a da ’criança sacudida’ (com sangramentos cerebrais e de retina em decorrência de sacudidas em crianças menores).

A maioria dos pesquisadores vê a punição corporal e o abuso físico como fases em um continuum de violências dirigidas à criança. Entretanto, não existe consenso sobre um limite entre punição corporal aceitável e abuso físico. Compartilho da idéia de que o abuso físico seria um resultado potencial da punição física, daí a importância de orientar os pais para que, desde cedo, aprendam formas não agressivas de educar seus filhos. Estudos mostram que 2/3 dos incidentes abusivos começaram com a tentativa dos pais em mudar comportamentos das crianças ou de ‘ensinar-lhes uma lição’.

O momento em que se ultrapassa a linha da disciplina para o abuso físico não está estabelecido, creio que essa é uma missão muito difícil, na medida em que fatores pessoais, culturais e sociais estão em jogo”.

Lilia Guimarães Pougy
Professora da Escola de Serviço Social e Coordenadora de Integração Acadêmica de Pós-graduação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ

“Considero a agressão física ou psicológica uma exitosa estratégia para a submissão, que pode levar à criação de indivíduos violentos. Um caminho de educar para a imposição da força. Definitivamente não existe ’tapa de amor’, sobretudo quando o alvo é uma criança, cuja cidadania deve ser protegida.

A Doutrina da Proteção Integral, base político-filosófica do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), formalizado na Lei 8.069/90, estabeleceu a garantia dos direitos fundamentais para todas as crianças e adolescentes. Dito em outros termos, a sociedade deve lutar pela construção de um Estado que assegure a universalização dos direitos à vida, à liberdade, à saúde, à educação, ao lazer, à segurança, entre outros direitos humanos, para todas as crianças e adolescentes, independentemente da classe social, raça ou etnia, gênero, religião ou geração.  De acordo com a Constituição Federal, de 1988, e com o ECA, o Estado, a sociedade e a família têm papéis importantes nessa empreitada.

Os castigos físicos impingidos aos entes mais fracos são restauradores de um lugar social baseado em um modelo familiar determinado. A família ‘margarina’, difundida massivamente no comercial em que se consome, além de um produto dito saudável, uma organização composta de um grupo de pessoas exalando felicidade, conquanto numeroso e sob hierarquia entre seus membros.

A idéia da família como uma instituição indubitavelmente violenta acima da integridade física de seus membros é impermeável ao modelo hegemônico da família ‘margarina’. No entanto, estudos e pesquisas demonstram a veracidade da tese da família violenta. As explicações desenvolvem a tese da exacerbação dos limites, por meio da patologização das famílias ou de seus membros, posicionando a diagnose e o conseqüente enfrentamento no plano da natureza e na expressão interpessoal – origem conceitual da violência intrafamiliar.

Essa resposta fácil é incompleta, porque prescinde do quadro social. Ora, a base da formação social brasileira é autoritária e as práticas derivadas renovam hierarquizações, tais como assistencialismo, tutela e clientelismo, entre outras que compõem um quadro de cidadania deficitária de ações pró-ativas para a construção de uma cultura de direitos e deveres. A tradição de construção permanente da cidadania, condição necessária para o sujeito de direitos se assenhorar do produto e do processo de conquista, esbarra em nossas raízes de tradição democrática limitada e constrangida pela gritante concentração de renda e conseqüente desigualdade social.

A via autoritária de imposição de limites busca vencer o ‘adversário’, aniquilar a capacidade de reação do outro. O caminho perverso de impor a força pela via autoritária é tão mais eficaz quando dirigido às crianças e aos adolescentes, vulneráveis aos maus tratos, abandonos, exploração e violência.

Dados oficiais apresentam um quadro estarrecedor: no período de 1993-2002 a taxa de óbitos por homicídio de toda a população mantém o crescimento gradual nas unidades federadas e nas regiões. Quando se desagregam os dados pela faixa etária de 15 a 24 anos, verifica-se um contínuo aumento de homicídios juvenis. Se a desagregação também envolver raça ou cor, verifica-se que a taxa de vitimização da população negra de jovens é bastante superior*.

A imposição de limites no Estado democrático de direito transita necessariamente pelas práticas dialógicas, pelo embate de idéias e pela construção de consensos, negociação entre cidadãs (e cidadãos), nos quais as diferenças não são apreendidas como desigualdades. Implica, sobretudo, uma nova sociabilidade possível numa sociedade mais justa e menos desigual. Esse é o campo de forças a ser concertado, o quadro social, composto de sujeitos que experimentam relações de poder, também com expressão microscópica. As relações sociais na expressão micro e macroscópica se entrecruzam e não podem ser dissociadas, sob o risco de um olhar fragmentado da sociedade.

Apesar de a cidadania plena ser incompatível com a sociedade capitalista, as conquistas havidas no campo dos direitos humanos, são as resultadas de lutas sociais e devem ser ampliadas.

Considero a agressão física ou psicológica contra a criança e o adolescente um crime hediondo sendo fundamental sua denúncia nas instâncias que compõem o Sistema de Garantia de Direitos, conforme previsto no ECA”.

*Cf. WAISELFISZ, Jacobo (2004). Mapa da Violência IV – Brasília:UNESCO, Instituto Ayrton Senna, Ministério da Justiça/SEDH.