• Edição 170
  • 07 de agosto de 2007

De Olho na Mídia

Violência: a gente [só] vê por aqui

Aline Durães

imagem ponto de vista

O tráfico de drogas e a violência a ele associada são problemas globais, que afetam, cada vez mais, parcelas significativas da população mundial. Mesmo países com qualidade de vida superior à brasileira e um nível de desigualdade inferior, como a Argentina, por exemplo, que, até pouco tempo, dispensavam atenção limitada ao comércio ilegal de entorpecentes, já começam a sofrer com o controle espacial de determinadas áreas pelos traficantes e com as taxas de criminalidade geradas pelo tráfico de varejo.

Processo semelhante acontece no Brasil. A população de praticamente todos os estados brasileiros enfrenta as conseqüências da atuação de grupos criminosos. A realidade retratada pela grande imprensa diariamente, no entanto, parece outra. Isso porque é inegável o espaço dado por telejornais, revistas e jornais de circulação nacional ao problema do tráfico especificamente no Rio de Janeiro.

Apesar de, nas décadas de 1980 e 1990, a capital brasileira com maiores índices de homicídio ter sido Recife, os holofotes da mídia se focam na violência urbana carioca, disseminando ainda mais medo, em especial, entre a população do Rio de Janeiro e dificultando um debate sóbrio acerca das causas e das possíveis soluções para a questão da violência.

Para analisar a abordagem midiática sobre a criminalidade e as drogas, o Olhar Virtual conversou com Marcelo Lopes de Souza, professor do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências, onde ele coordena o Núcleo de Pesquisas sobre Desenvolvimento Sócio-Espacial (NuPeD). Na entrevista, Marcelo explica as razões da prioridade dada pela imprensa às notícias sobre o Rio de Janeiro e comenta sobre a responsabilidade dos acadêmicos na construção de uma informação de qualidade acerca do tema. Confira:

Olhar Virtual: Por que, na sua opinião, a violência e a criminalidade no Rio de Janeiro são tão espetacularizadas?

Marcelo Lopes de Souza: O Rio de Janeiro é a segunda metrópole nacional e tem, naturalmente, uma exposição maior que as demais cidades. Mas, em parte, isso acontece também porque a Rede Globo de Televisão tem sede no estado, o que faz com que o Rio de Janeiro tenha uma exposição, às vezes, desproporcional. O cidadão que vive no Nordeste ou no Norte muitas vezes sabe mais do que acontece em Ipanema do que em um bairro de sua própria cidade, e, por isso, ao assistir a um Jornal Nacional, por exemplo, acha que o problema da violência está muito mais no Rio de Janeiro que em qualquer outra cidade brasileira.

Olhar Virtual: O tráfico de drogas no Rio de Janeiro apresenta alguma particularidade que possa explicar essa exposição midiática?

Marcelo Lopes de Souza: O padrão de segregação espacial do Rio de Janeiro agudiza conflitos e contradições que, em outros lugares, é mais fácil de encobrir. Na maior parte das capitais brasileiras, há um padrão de segregação residencial mais “claro”, no qual a pobreza basicamente está concentrada na periferia e bem longe da classe média, classe essa que agrega os principais formadores de opinião. Mas, no Rio de janeiro, existe com freqüência uma proximidade muito grande entre os espaços segregados dominados pelo tráfico de varejo e os espaços da classe média. Isso ajuda a dar um tipo de visibilidade ao tráfico do estado que não chega a ser tão grande nem mesmo em São Paulo. Lá, foi preciso que muitos paulistanos assistissem às três “ondas” de ataque do PCC (Primeiro Comando da Capital) — que, diga-se de passagem, ocorreram sobretudo no centro da cidade e em outros locais onde trafega a classe média — para que eles se apavorassem. “Balas perdidas”, fechamento de túneis por traficantes e outras experiências cotidianas dos cariocas são muito menos presentes no cotidiano da classe média paulistana.

Olhar Virtual: É comum a grande mídia recorrer a especialistas para discutir possíveis soluções para a questão da criminalidade urbana. Como o Sr. avalia a participação desses pesquisadores nos Meios de Comunicação?

Marcelo Lopes de Souza: Simplificando, existem três grandes correntes de especialistas: aqueles que chamo de os “institucionalistas”, que relacionam os problemas da violência, acima de tudo, com falhas e deficiências institucionais; os “redistributivistas”, que afirmam que a violência tem a ver, basicamente, com problemas relativos à privação, à pobreza e à desigualdade; e os “culturalistas”, que enfatizam as conexões entre a criminalidade e a crise de valores da sociedade contemporânea. É fácil constatar que o espaço midiático é quase que monopolizado pelo discurso dos “institucionalistas”. A grande imprensa, seja a falada, a escrita e sobretudo a televisionada, quase sempre só dá tribuna aos conservadores e aos “moderados”; muito raramente dá voz a alguém que, mesmo sem perder de vista o pragmatismo, resolva fazer uma análise mais exigente, mais crítica e menos complacente quanto às responsabilidades do modelo social capitalista no que se refere à geração de estímulos e oportunidades para certos tipos de estratégias ilegais de sobrevivência e certos tipos de crimes violentos, em especial em um país semiperiférico tão injusto como o Brasil. De certa forma, não existe “a” criminalidade violenta; o que há são variados tipos de crimes violentos, cada qual condicionado por um conjunto específico de causas, e tudo variando de acordo com o lugar. Se os crimes violentos possuem múltiplas causas, não podem ser combatidos com uma solução simplista, monocausal.

Olhar Virtual: A Academia tem parcela de culpa diante da escassez de debates qualificados sobre a violência na mídia?

Marcelo Lopes de Souza: Realmente a gente também não pode culpar apenas a mídia. Os pesquisadores têm a obrigação de não se deixarem pautar pelos apelos dos jornalistas por explicações simples e, em vez disso, deveriam buscar transmitir uma explicação mais ponderada. Acontece que muitos pesquisadores acabam adequando suas opiniões e declarações à linguagem midiática. Além disso, como segurança pública, criminalidade e violência urbana são temas cada vez mais debatidos, muitas pessoas começam a se interessar e passam a dar “pitaco”, sem que haja por trás disso uma real experiência profissional e de pesquisa, e tampouco embasamento teórico. Deve-se ter em mente, no entanto, que esse é um tema delicado e que causas e soluções excessivamente simplificadas podem causar muito estrago junto a uma classe média já bastante “boçalizada” e embrutecida, que lê muito pouco e que prefere o Big Brother Brasil a um artigo de qualidade, com caráter de divulgação científica e escrito por um pesquisador. É essa mesma classe média que se enclausura em seus condomínios exclusivos, que se horroriza com sinceridade apenas parcial quando seus filhos espancam uma empregada doméstica e que, além do mais, clama de maneira cada vez mais audível para que o Exército saia dos quartéis e venha “salvar o país” da violência alarmante.