• Edição 141
  • 23 de novembro de 2006

Ponto de Vista

Excesso de procupação com aparência no mercado de trabalho é discriminação

 

Amanda Wanderley

imagem ponto de vista

As recorrentes contratações temporárias feitas no fim de cada ano com a proximidade das festas de Natal e Ano Novo trazem à tona a discussão sobre os critérios utilizados no recutamento para o mercado de trabalho.

As vagas de trabalho temporário, nessa época, são, em geral, para vendedores. Função importante no corpo empresarial, já que se relaciona diretamente com o consumidor, e por isso, algumas características são buscadas em candidatos interessados a preencherem a vaga de vendedor, como não ser tímido, saber argumentar para vender o produto e ter uma boa aparência. Acontece que o limite entre a busca pela boa aparência e a discriminação racial, social e estética está sendo desrespeitado e a linha entre esses dois extremos está cada vez mais tênue.

O Olhar Virtual conversou com Rosemere Maia, professora da Escola de Serviço Social, para discutir os critérios de recrutamento para empregos no comércio

O Rio de Janeiro é, sem sombra de dúvida, uma cidade vocacionada para o terciário. Mais de 80% de seus trabalhadores formais estão vinculados a este setor, principalmente atuando no comércio e nos serviços, bem como na administração pública. Se considerarmos, entretanto, os trabalhadores informais, com toda certeza haverá um inchaço ainda maior nesta proporção, sobretudo se contabilizarmos o significativo contingente daqueles que trabalham por conta própria e sem carteira e que atuam em atividades vinculadas ao comércio.

O comércio, ao longo das últimas décadas, tem funcionado como “colchão anticíclico”, amortecendo os impactos decorrentes da crescente exclusão dos trabalhadores dos setores agropecuário e industrial. Contudo, a inserção dos trabalhadores neste setor também tem correspondido à tendência que hoje se coloca ao mercado de trabalho, de maneira geral: contratos temporários, precarização, relações informais, tornados legítimos em função de toda uma flexibilização nas legislações e relações trabalhistas, principalmente a partir dos anos 90.

O setor comercial, de modo geral, e os shopping centers, em especial, vêm se utilizando de contratos temporários de forma recorrente, principalmente em épocas em que se prevê o aumento do público (datas festivas, sobremaneira), o que é visto pelos comerciários como fator de insegurança, incerteza, já que, ainda que à grande maioria seja posta a possibilidade de “efetivação”, sabem que acabado o período do contrato o desemprego é que tenderá a se apresentar como realidade para a maioria. Por conta disto, torna-se acirrada a competição entre os vendedores, que disputam clientes entre si, envolvem-se numa rede de intrigas, tudo em função das metas que são obrigados a atingir – o que significa a possibilidade de permanência no emprego, a médio prazo, e no aumento do salário (através das comissões), a curto prazo.

Apesar da precariedade dos vínculos trabalhistas, as exigências para a candidatura a uma vaga não são poucas : critérios/requisitos como idade, sexo, escolaridade, cursos complementares se juntam a outros (nem sempre explicitados) como cor, boa aparência , boa forma física, local de moradia, etc, contribuindo, não raras vezes, para a manifestação de processos de discriminação e preconceito.

Ainda que não viabilizem uma renda tão elevada, os postos de trabalho criados nos shopping centers se apresentam como uma alternativa ao desemprego, sobretudo se considerarmos que são procurados, principalmente, por jovens que, pela inexperiência ou falta de qualificação para atividades técnicas, acabam buscando no comércio a sua primeira chance. Além disto, há de se considerar que é este segmento que interessa especialmente aos lojistas, não só pela equação que equivale inexperiência a baixo salário mas, também, em função da lógica que rege a sociedade de consumo, onde o corpo, redescoberto, converte-se num precioso objeto, sendo o jovem capaz de exibi-lo em sua plena forma e vigor, o que é levado às últimas conseqüências, principalmente nos shopping centers.

Os jovens recrutados para os postos de trabalho nestes estabelecimentos devem, tal qual um espelho, refletir o modelo de consumidor que a loja e/ou o serviço pretendem atrair. Devem ser capazes, outrossim, de repelir aqueles que fujam ao protótipo, que não têm nada a ver com a cara da loja, que não estão de acordo com o que a marca pretende exibir/vender, conforme nos relataram dois gerentes que entrevistamos durante nossa pesquisa em shopping centers do Rio de Janeiro. Isto significa que, mais que trabalhadores, os vendedores atuam como vitrines vivas, expondo em seu próprio corpo os produtos comercializados. Assim, beleza, vigor e boa forma tornam-se fundamentais, apresentando-se como barreiras para gordinhos, portadores de necessidades especiais, pessoas mais idosas.

Muitos lojistas optam pela contratação de vendedores brancos, o que põe por terra o “mito da democracia racial”. Isto já foi, inclusive, denunciado pelo CEAP (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas), que constatou, em 2001, que apenas 3,37% dos vendedores contratados pelas lojas de um shopping da Zona Sul do Rio eram negros ou afro-descendentes.

Em relação ao local de moradia, muitos empreendimentos preferem a contratação de pessoas que residam em áreas próximas e, principalmente, aquelas que não morem em favelas. Neste sentido, há dois componentes a interferirem no recrutamento : no primeiro caso, é o custo do vale-transporte ; no segundo, a clara associação que se faz entre favela-violência-criminalidade, o que acaba submetendo a grande maioria de seus moradores a situações que evidenciam toda sorte de preconceito.

Com certeza, todas estas questões aqui levantadas são extremamente problemáticas, sobretudo diante de um quadro que não aponta para qualquer reversão deste processo de precarização das relações trabalhistas. Além disto, no que se refere às formas (por vezes veladas) de preconceito e discriminação, a sociedade, de modo geral, ainda tem se posicionado de maneira tímida no que se refere à sua denúncia e enfrentamento, de modo que sua punição seja mais rigorosa.