• Edição 126
  • 10 de agosto de 2006

Painel de Argumentos

URBANISMO E EDUCAÇÃO

Pedro Lessa

Com o grande crescimento das populações urbanas 1, a criança e o jovem, mais do nunca, precisam ser despertados para perceber sua cidade como um lugar que muda, que pode ser transformado e melhorado pelas pessoas, um lugar onde se pode ter esperanças e uma vida melhor.

A escola formadora de cidadãos é o melhor ambiente para se falar com a criança e o jovem sobre a cidade e sobre como torná-la mais humana.

No Brasil, é novidade reunir educadores e urbanistas para desenvolver um modo de educar que aproxime a criança e o jovem dos meios que dispomos para o direcionamento 2 e o controle 3 da cidade. Não faz muito tempo, os mundos da Pedagogia e do Urbanismo eram distantes e incomunicáveis. Era quase impossível pensar em uma Educação para a cidade. Educação voltada para formar futuros vizinhos 4; que tratasse dos direitos e deveres do cidadão perante o espaço público; que destacasse as construções que valorizam o espaço comum.

1. O quadro urbano atual

O urbanismo é impotente quanto à deseducação do cidadão;

a educação é impotente ante os males que o meio urbano traz aos educandos.

Para compreender a oportunidade da ação educativa no que se refere ao urbanismo, convém lembrar que nos últimos cinqüenta anos a urbanização das grandes cidades brasileiras se deu de forma rápida 5 e pouco planejada. Isto resultou em enormes transformações para o cotidiano de toda a população, com maiores privações para as parcelas mais pobres.

Para essas camadas, as transformações trouxeram como conseqüência a dificuldade de acesso à moradia, a inadequação do transporte público e dos demais itens de infra-estrutura. Além disso, após a década de oitenta, como reflexo das políticas globalizadas, a oferta de emprego começou a encolher e cresceu o número de pessoas que vivem em ocupações, em áreas irregulares, e trabalham na informalidade.

Este quadro de menor qualidade de vida é visível e bastante forte. Em reação a ele, estamos unindo forças sociais e de governo para seu enfrentamento. Na busca de reflexão e respostas a esses desafios, devemos estar abertos a novos olhares sobre nossas cidades e, em especial, sobre o cidadão que estamos formando para nelas viver.

A cidade é um ambiente totalmente produzido pelo homem. Ninguém conhece este ambiente por inteiro, e todos têm sempre o que aprender, de modos de vida a códigos de convivência. Há, portanto, motivos que reforçam a necessidade de uma educação para a cidade.

Se a partir dos anos oitenta, a luta por maiores cuidados com o ambiente natural levou ao reconhecimento social e oficial da educação ambiental, hoje, se quisermos melhorar nossas cidades, precisamos também usar todos os meios para valorizar o ambiente construído. É aí que entra, como ferramenta específica na formação e motivação do público, a Educação Urbana.

2. O papel da escola

A escola está assoberbada com a necessidade de atualização

frente às novas tecnologias e aos crescentes papéis

a ela atribuídos pela sociedade. Essa escola dará conta?

Como a nova realidade urbana influencia as atitudes dos educandos?

De que modo a escola, os pais e os responsáveis estão formando os jovens que, em breve, serão os adultos das cidades?

Com as transformações que a população está vivendo, os comportamentos mudam. Ao tentar se proteger do medo e da desesperança, muitos de nós, adultos, passamos a ser mais fechados e egoístas. E este é o mundo que reproduzimos nos mais jovens, tentando protegê-los: “— Não fale com estranhos... ”. Ao mesmo tempo, como parte do mesmo modo de vida, os pais passam a ter menos tempo para cuidar dos filhos, e a educação familiar restringe radicalmente seus conteúdos. Com isto, espera-se mais e mais da educação escolar e da participação da sociedade na educação extra-escola.

No mesmo sentido, o edifício físico da escola e a inserção desta no entorno urbano apresentam importantes conseqüências, que interferem no seu conteúdo e no seu fazer. Entre estas, cabe destacar:

· frente à violência e às drogas, as escolas se fecharam fisicamente. Ao invés de grades que permitiam “ver dentro” e davam ao público exterior uma percepção das construções escolares e da algazarra estudantil como representação social dos esforços e investimentos que a sociedade faz na formação dos mais jovens, agora temos muros cada vez mais altos. As escolas estão ficando invisíveis para quem passa nas ruas. Externamente, correm o risco de se transformarem em “lugar nenhum” ou “não lugares”.

· Pelas mesmas razões, a escola sofre a perda de território que atinge toda a sociedade. Seu cotidiano - e, às vezes, seus conteúdos - chegam a ser condicionados pela insegurança urbana. Assim as aulas externas e passeios fora da escola, tão importantes para o despertar e a motivação do aluno, vão se tornando atividades de difícil realização e se programadas, trazem preocupação para os professores. Mas e se, como acreditam os educadores progressistas, este envolvimento dos alunos com a cidade é insubstituível, como reagir? Como proporcionar aos alunos a necessária interação com a realidade da cidade em que vivem? Uma coisa é fato: as restrições reais ou apenas as preocupações e o receio tornam menos fluentes as trocas da escola com a vizinhança, com o bairro e a cidade.

2.1 A educação para a cidade - como toda educação - tem sua especificidade.

A matéria cidade – fato humano, sociológico e cultural por excelência - é um objeto de leitura múltipla e que varia radicalmente, segundo o ponto de vista de quem fala. Por outro lado, a cidade não é um lugar neutro e sim um palco de ação de interesses às vezes conciliáveis, outras vezes não. Estas percepções portam, em si, instigantes desafios para o educador.

Quem pensa despertar no aluno um comportamento crítico sobre a cidade existente precisa considerar também a inércia e o peso das idéias conservadoras sobre esta mesma. cidade. São modos de pensar que predominam há longo tempo em amplas parcelas da população urbana, oriundos da formação histórica e política do país. Essa inércia influenciou e influencia a cabeça dos pais e responsáveis dos alunos. Estão quase todos imbuídos da idéia de que o cidadão comum nada pode com relação ao futuro da cidade e mesmo do bairro. A sociedade brasileira, mais de 10 anos depois da nova Constituição, ainda não se deu conta das possibilidades da democracia urbana. Transmitimos a nossos filhos a idéia de que a cidade é isto que existe hoje – com todas a mazelas – e que o melhor é adaptar-se a ela.

2.2 Direitos x deveres

Um aspecto que a educação deve prevenir e trabalhar é o modo desequilibrado como os deveres da cidadania urbana se impõem sobre a população e preponderam sobre os direitos, proporcionando uma visão deformada da cidadania.

A maioria da população, só na fase adulta – ao querer, por exemplo, alugar uma moradia - toma conhecimento da existência de uma das duas dimensões da cidadania urbana: a das obrigações de quem se responsabiliza por um imóvel 6. Sobre a outra dimensão, os direitos 7 de quem vive na cidade, quase não se fala e há pouca tradição em sua exigência. Ë necessária uma visão completa da cidadania.

Esse é um tema da Educação Urbana. Ela deve informar a reciprocidade das obrigações e direitos e desenvolver, em especial, a divulgação destes últimos. Só assim eles podem começar a existir na prática: direitos só ganham vida quando as pessoas os conhecem, os sentem como seus e se dispõem a exercê-los.

2.3 Que cidade se ensina ?

A pedagogia urbana deve basear-se nos novos papéis e espaços que a democracia abriu para os cidadãos brasileiros. É a necessidade da sociedade – como um todo - reagir ao descontrole urbano e à desesperança de vida que torna oportuna a aproximação de urbanistas e educadores. A prática mostra que, isolados em seus ofícios e instrumentos – de propor cidade e de formar novos cidadãos - eles têm um horizonte limitado de possibilidades.

Se não estivermos sintonizados com os vários avanços da sociedade no campo das questões urbanas 8, não estaremos aptos a propor os jovens-cidadãos como atores da cidade que queremos, a defender sua inclusão como sujeitos na definição dos planos e projetos de interesse para a coletividade, a capacitá-los como “falantes” nos debates das questões urbanas.

Quem hoje é criança ou jovem vem, desde já, sendo alvo de políticas públicas ou sendo vítima de sua ausência. Em poucos anos - já como adultos - serão moradores, comerciantes, empresários, empregados, funcionários, assumindo uma nova ligação particular com a cidade.

A Educação Urbana deve contribuir para preparar cada um para o exercício de convivência no espaço público. Deve mostrar a necessidade do indivíduo se deslocar para a ótica do coletivo; deve sensibilizar a todos sobre a interferência das construções privadas ou públicas sobre a qualidade do espaço público; deve acentuar a necessidade de preservar o patrimônio cultural, as áreas livres e o ambiente natural.

*Pedro Lessa é arquiteto da Prefeitura Rio (SMU-PCRJ) e professor da FAU-UFRJ

 

Para conhecer mais sobre o trabalho do Urbanista Pedro Lessa assista ao vídeo sonoro e leia artigo em http://acd.ufrj.br/~petrus/arquivo.html

 

 

1 O censo mostrou que, em 2000, 82 % da população brasileira já viviam nas cidades ( fonte IBGE- www.ibge.gov.br ).

2 Direcionar a evolução da cidade e os bairros é tarefa que exige planejamento e diálogo com a população. Este dialogo ocorre melhor se os temas técnicos forem traduzidos de modo a interessar ao morador comum. É preciso divulgar cenários possíveis de desenvolvimento e promover debates e audiências públicas sobre questões do urbanismo, para a definição da cidade desejada. Como exemplos dessas questões, temos: como compatibilizar a preservação do patrimônio e da paisagem com empreendimentos que trarão os tão necessários novos empregos? Temos áreas de lazer suficientes? Onde colocar atividades que ninguém quer ter como vizinhas? Devemos deixar que uma rua residencial se torne comercial?

3 O controle urbanístico é exercido através da fiscalização do uso de terrenos e construções. Ele visa a garantir que os interesses individuais não prejudiquem o bem estar, a tranqüilidade e o lazer da coletividade. Para que esse controle seja efetivo, a população deve ser informada e ficar convencida das vantagens de viver em “áreas regulares”, ou seja, aquelas onde a legislação urbanística e de edificações é respeitada.

4 Sobre a preparação de jovens para viver como futuros vizinhos ver Carlos Munizaga “Ciudad y Vecinos: Cuatro ideas para la ensenanza de la vida urbana” – Revista Chilena de Antropologia nº 4 - Faculdad de Filosofia Humanidades y Educacion - Universidad de Chile - Santiago – Chile.

5 A população das capitais brasileiras - que era de 8 milhões de pessoas em 1950 - cresceu 400% em cinquenta anos e, em 2000, já atingia 40 milhoes ( fonte IBGE- www.ibge.gov.br )..

6 Entre as obrigações municipais, destaca-se o compromisso de pagar o IPTU e de tirar licença para obras, como a ampliação de uma moradia.

7 Os direitos do morador urbano são praticamente desconhecidos da população; na legislação: só em 2001 - mais de 10 anos após a nova Constituição - passou a vigorar o ESTATUTO DAS CIDADES (Lei Federal nº 10.257, de 10/7/2001). Entre outros itens, ele define direitos de informação e de participação dos moradores em decisões importantes de urbanismo.

8 Entre os quais se destacam o Estatuto das Cidades e a institucionalização de formas de ouvir a população, bem como o dever de transparência nos atos do poder público.