• Edição 109
  • 13 de abril de 2006

Olho no Olho

O imaginário na doação de órgãos

Aline Durães

imagem olho no olho

Apesar de o Sistema Nacional de Transplante ser seguro e a retirada de órgãos para doação ser rotina em hospitais brasileiros, a fila de espera dos receptores ainda é longa. O preconceito e a má informação impedem muitas vidas de serem salvas.

Quando o assunto é doação de órgãos, uma série de medos povoa o imaginário das pessoas. O fantasma da comercialização clandestina, a esperança dos familiares de o potencial doador voltar à vida depois da morte cerebral, além das questões religiosas e espirituais inerentes ao tema, são alguns aspectos comportamentais que freiam o aumento no número de doadores.

Para comentar as causas dessa resistência ao transplante de órgãos, o Olhar Virtual entrevistou os professores Luiz Fernando Dias Duarte, antropólogo do Museu Nacional/UFRJ, e Francisco Portugal, vice-coordenador da Pós-Graduação do Instituto de Psicologia da UFRJ e especialista em Psicologia Social.

 

 

Luiz Fernando Duarte
Antropólogo do Museu Nacional/UFRJ

“A possibilidade técnica de transplante de órgãos entre seres vivos (ou entre mortos e vivos) é apenas a ponta mais evidente de uma ampla e crescente série de intervenções mecânicas possíveis na máquina corporal.

Essa representação mecanicista científica que entende o corpo como uma máquina, não é, no entanto, compartilhada totalmente pelo senso comum dos membros de nossas sociedades. O corpo humano é vivenciado pelo crivo, culturalmente constituído, da auto-consciência ou auto-percepção, que sempre o investe de valores, significados, sentidos, muito mais amplos e complexos que os de uma mera máquina. Nenhuma intervenção técnico-científica no corpo humano é, assim, vivenciada apenas como um aperto de parafusos.

Os transplantes de órgãos e tecidos são particularmente complicados, pois envolvem a troca de partes representadas como ‘vivas’ de uma pessoa para outra. Ou seja, uma confusão entre as identidades dos contratantes, uma ameaça à integridade subjetiva do doador e do receptor, à sua unidade físico-moral, mesmo que essa ameaça seja a condição de sua sobrevivência estritamente física.

A força dessa representação não é igual para todos os tipos de órgãos (ou entre os órgãos e os tecidos), uma vez que há uma hierarquia valorativa muito nítida entre eles, dependente de arraigadas imagens culturais: o coração não é certamente visto como um mesmo tipo de órgão que a vesícula ou o pâncreas; o cérebro não se encontra na mesma escala de valor que o fígado, o ovário ou um fragmento de pele.

Não se trata de meras ‘superstições’; trata-se de valores estruturantes da visão de mundo dos possíveis pacientes e não se pode subestimar sua força psicológica positiva ou negativa no complexo processo de decisão quanto ao transplante e de sucesso ‘mecânico’ de seu eventual empreendimento”.

Francisco Portugal
Especialista em Psicologia Social e Vice-Coordenador da pós-graduação em Psicologia da UFRJ

“Dentro da abordagem da psicologia social, que entende o sujeito como uma entidade construída socialmente, os órgãos podem ser pensados como entes que se tornam queridos, ou seja, eles são plenos de significações. Nesse sentido, as partes do corpo se transformam em objetos de amor e separar-se delas se torna tão difícil quanto se separar de uma pessoa próxima.

Olhar sob esse ângulo é mais esclarecedor do que pensar na relação “Sujeito X Órgão” apenas dentro de parâmetros médicos. A ótica médica aborda a morte de maneira mais simplista. Ela entende que, ao morrer, o indivíduo não precisa mais de seus órgãos e doá-los é conseqüência prática do processo vital.

Se analisarmos essa questão a partir da postura dos familiares do potencial doador, veremos que a relação de significação muda. A recusa da morte nesses casos é muito grande. Nós temos uma visão negativa do momento da morte; ele gera constrangimentos, embaraços. Livrar-se dele o mais rápido possível é a via menos dolorosa a ser adotada. A negativa ao transplante nesses casos é expressão da dificuldade que existe em se falar e em pensar na morte.

A resistência em doar órgãos reflete ainda a lógica atual de interações baseadas na obtenção de prazer e/ou vantagem pessoal. O indivíduo faz aquilo que lhe é proveitoso, que lhe traz algum benefício. Os valores individualizantes estão muito presentes hoje nas relações e impedem a ajuda mútua e a partilha da vida social. Nesse sentido, para muitas pessoas doar órgãos é pouco importante”.