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Edição 124      27 de julho de 2006


Olho no Olho

Cotas: direito ou privilégio?

Priscilla Bastos

imagem olho no olho

A implantação do sistema de cotas em universidades públicas do estado iniciou-se na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mas o debate provocado por essa iniciativa mobiliza a sociedade. Para repercutir essa polêmica, o Olhar Virtual conversou com a coordenadora de Comunicação Sindical do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da UFRJ (SINTUFRJ), Denise Góes, e com o professor e coordenador do Laboratório de Estudos das Universidades (LEU), Luiz Antônio Cunha.

 

 

 

 

 

 

Denise Góes
Coordenadora de Comunicação do SINTUFRJ

“O debate sobre as cotas é uma discussão de muito tempo que o movimento negro vem travando ao longo de sua existência. Eu, que sou militante do Movimento Negro Unificado – uma entidade nacional que, desde 1978, tem essa luta de combate ao racismo – entendo a questão das ações afirmativas como um projeto amplo de reparação. Temos como base o processo histórico, pois não há como justificar a existência de um processo de reparação senão pelo processo histórico da escravidão. Não se pode negar que houve uma diferenciação dentro do processo de construção do Brasil, pois os negros foram escravos e, com a abolição, nada garantiu a existência de mecanismos de subsistência. O ex-escravo não tinha mais casa, salário, emprego.

Quando os imigrantes vieram para o Brasil, receberam insumos, receberam dinheiro, tanto que temos vários tipos de colônias no Brasil. Existe um fosso entre os afro-descendentes e os não-negros que se precisa compensar. E, como entendemos que essa é uma dívida histórica, quem tem que compensar é o Estado, pois o Estado brasileiro nos deve uma compensação pela exploração da escravidão e pela forma como ela se deu. Nos Estados Unidos, ela se deu diferente. Ao abolir a escravidão, as pessoas ficaram com pedaços de terra na guerra da secessão; um processo diferenciado. Aqui, o negro saiu sem nada. Então, para nós do movimento negro, o Estado nos deve, não em dinheiro, mas em políticas públicas. Hoje a gente exige que essas políticas públicas sejam postas em prática, ou melhor, uma parte delas, pois políticas de ação afirmativa não se acabam em cotas; é um programa amplo, de igualdade racial, de promoção de oportunidades, e a cota é uma delas.

Vão nos perguntar por que começar pelo ensino superior. Porque, hoje, as reais possibilidades de alguém ascender estão colocadas na formação a nível superior. Não adianta vir com a teoria de que vamos melhorar primeiro a educação infantil, o ensino fundamental e médio, porque isso levará, em média, de quinze a trinta anos. Quem já esperou quinhentos não quer esperar mais trinta. Então, nós queremos cotas para negros pautadas em uma política de tratamento desigual para quem sempre foi tratado com desigualdade. Vão citar artigos da Constituição de que somos todos iguais perante a lei. Somos? Se nós fôssemos, teríamos reais oportunidades de igualdade. Dentre os documentos que foram entregues ao Senado em relação à lei das cotas e sobre o Estatuto da Igualdade Racial, existe um que fala contra as cotas, na medida em que promoveriam uma revolução social. O negro brasileiro, quando exige igualdades de oportunidades, não está traçando uma guerra contra o não-negro; muito pelo contrário. Nós não queremos estabelecer esse tipo de situação; nós queremos igualdades de oportunidades”.

Luiz Antônio Cunha
Coordenador do LEU

“Eu sou contra a maneira pela qual as cotas estão chegando à universidade. Primeiro, por uma imposição de governo, pois já há projetos na Câmara, o que afronta a expectativa de autonomia substantiva da universidade. Desde o início, a Universidade quer ter o controle sobre a forma de recrutar os seus alunos, e agora já não tem o controle sobre isso. As universidades privadas ficam a salvo. As universidades públicas terão de se privatizar para terem essa autonomia? Sou contra a maneira como está chegando de fora e de dentro, pois há uma falta da discussão. A universidade, que tem seu lugar de exame das questões, hoje não está discutindo os assuntos; no máximo, está havendo confronto de opiniões, inclusive desqualificando os oponentes, ou seja, os contrários às cotas.

Quem defende essa posição é chamado de elitista, conservador, tem medo da democratização. Já ouvimos isso de presidente da República, de ministro da Educação e até de colegas da universidade. Um presidente ou um ministro, como há casos, pode não entender da universidade, mas colega da universidade, não. Acho, na verdade, que essas pessoas têm medo de um exame objetivo dessas questões.

Há um ponto que me intriga: o fato de a esquerda estar a reboque dessa situação. Cotas nunca foram elementos de plataforma socialista ou comunista em lugar nenhum do mundo, nem no Brasil. Mas, de repente, a esquerda, por oportunismo, por falta de proposta e para não perder o “bonde”, resolve ir atrás e dizer que a proposta é democrática.

No meu modo de entender, as cotas, quaisquer cotas, vão gerar um problema sério no Brasil, porque reforçarão o que há de mais atrasado e antidemocrático na nossa cultura: o particularismo. Na cultura brasileira, confunde-se a defesa de privilégio – alguma coisa que beneficia um grupo diante de outro – com o direito. Nós nunca teremos uma democracia no Brasil enquanto se confundir privilégio com direito. Precisamos enfatizar o universalismo como a base da construção da democracia no Brasil. O direito de todos não é a soma de privilégios de grupos, não importa que tipo de grupo seja esse. Sou partidário daqueles que defendem que precisa ser discutida discriminação de todos os tipos: gêneros, religião e não-religião, racial. Não estou defendendo que o Brasil não seja um país racista; muito pelo contrário, mas essa maneira vai acabar reforçando aquilo que se quer eliminar. O inferno está cheio de boas intenções e, daqui a pouco, o inferno do racismo vai estar cheio de anti-racistas que pretendiam a mesma coisa. A democracia no Brasil não é a soma de privilégios de grupos. Isso vai acabar gerando um estamentalismo."

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