• Edição 262
  • 11 de agosto de 2009

Olho no Olho

Cultura no cartão

Aline Durães

 

O presidente Luís Inácio Lula da Silva encaminhou ao Congresso Nacional, no último dia 23 de julho, o projeto de lei que cria o Vale-Cultura. A iniciativa se trata de um cartão magnético recarregável, semelhante ao tíquete-alimentação, com saldo de até R$ 50 mensais, que o trabalhador poderá usar para consumir bens e serviços culturais, como filmes e peças de teatro. As empresas que aderirem ao projeto poderão deduzir até 1% do imposto de renda.

Durante a cerimônia de lançamento do vale, ocorrida no Teatro Raul Cortez, na Federação de Comércio do Estado de São Paulo, Lula enfatizou que o projeto se constitui em uma forma de tornar a Cultura acessível a todas as classes sociais. Em consonância com o presidente, Juca Ferreira, ministro da Cultura, destacou a importância do Vale-Cultura para estimular o consumo de bens culturais no Brasil, país onde apenas 17% dos habitantes compram livros e 92% nunca freqüentaram um museu.

Para certos setores da sociedade, no entanto, o vale não soluciona os principais problemas da Cultura, já que não cria pólos culturais nas regiões de menor renda. Alguns críticos chegam a encarar esse projeto como uma manobra política de Lula para angariar votos nas eleições presidenciais de 2010.

Em que medida o Vale-Cultura irá contribuir para o fomento da Cultura no Brasil? O valor do vale é suficiente para o consumo de bens culturais? As classes populares terão, de fato, acesso à Cultura? Para responder a essas e outras questões, o Olhar Virtual conversou com Carmen Gadelha, coordenadora do curso de Direção Teatral da UFRJ, e Marcelo Macedo Côrrea e Castro, decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH).

“Temos que estimular, de todas as formas possíveis, a formação de público desde a mais tenra idade”
Carmen Gadelha
coordenadora do curso de Direção Teatral

Uma política assistencial imediata é necessária para sairmos do patamar de pobreza e colocarmos um contingente grande de pessoas para consumir bens e serviços. Os R$ 180 do Bolsa Família, por exemplo, não resolvem nada, mas é esse dinheiro que vem segurando o mercado interno.

O mesmo acontece com o Vale-Cultura. Em um plano geral, cinqüenta reais não cobrem nem mesmo uma grande peça de teatro. Mas se o trabalhador consegue uma meia-entrada e vai a, pelo menos, uma peça a cada dois meses, ao cinema ou a uma exposição, abre-se para ele uma perspectiva. O horizonte de pensamento desse indivíduo muda muito.

O Vale-Cultura pode não resolver o problema, mas cria condições de saná-lo. É uma idéia importante. Eu não posso esquecer que pertenço a uma geração detentora da meia-entrada e freqüentadora de teatro e cinema. Eu não vejo jovens no teatro hoje. Isso é um sintoma. Temos que estimular, de todas as formas possíveis, a formação de público desde a mais tenra idade.  

Do ponto de visto do trabalhador de Cultura, do produtor de bens simbólicos, essa iniciativa não traz grandes mudanças em curto prazo, mas prepara o cenário para importantes transformações. Isso porque, com a ampliação do consumo, mais pessoas terão acesso aos serviços; cria-se então demanda, e as políticas de fomento à produção vão se evidenciar com mais clareza. Onde estão as demandas hoje? A gente ainda não sabe. Mas, a partir do momento, que mais pessoas usufruírem da Cultura, poderemos traçar diagnósticos mais nítidos e políticas mais amplas para atender a demanda.

Além do mais, com isso, os preços dos bens culturais podem diminuir. Quando a demanda é ampliada e identificada, existe a possibilidade de se operar com políticas de ampliação da produção, ou seja, a oferta será maior.

Nesse sentido, a universidade possui importância ímpar. Ela deve traçar políticas internas que trabalhem transversalmente com a Cultura. Por exemplo: quando apresentamos o espetáculo de um graduando, estamos promovendo a Educação e, ao mesmo tempo, incentivamos pessoas pouco habituadas à universidade a frequentar o nosso espaço. Os próprios organismos institucionais devem pensar a importância da produção cultural.

 

 

“O Vale-Cultura é mais uma política assistencialista. Ele estimula o consumo de Cultura, mas não amplia o acesso a ela
Marcelo Macedo Côrrea e Castro
decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas

As políticas de bolsas de inclusão utilizadas como paliativo para a falta de políticas mais amplas e consolidadas são sempre discutíveis, isso porque o paliativo pode acabar virando permanente.

O Vale-Cultura é mais uma política assistencialista. Ele estimula o consumo de Cultura, mas não amplia o acesso a ela. Mesmo a questão do consumo, nesse caso, é questionável, já que com R$ 50 não se pode fazer muita coisa. É evidente, no entanto, que, em uma realidade de quase indigência, não há como dizer não ao Vale-Cultura. Qualquer transferência de recursos, por assim dizer, acaba sendo vista como necessária. 

Se não pensarmos uma política de inserção de cultura, não avançaremos muito. A cultura não precisa ser apenas consumida, mas deve ser produzida também. A criação de centros culturais nas comunidades de menor renda é uma alternativa que não só permite ao artista consagrado e à Cultura valorizada pelas classes hegemônicas chegar até as regiões menos abastadas como também possibilita que as comunidades solidifiquem a Cultura que produzem. Os cidadãos dessas localidades fazem o seu próprio cinema, sua dança, seu teatro e precisam de um espaço para dar visibilidade a isso. Em vez de o indivíduo entrar em uma van para ir à zona sul assistir a uma peça de teatro, ele pode e deve pensar e encenar peças próprias no seu espaço.

Na minha opinião, o problema da relação dos cidadãos com a Cultura começa pela Educação. A Educação se constitui não só em uma forma de o indivíduo ter acesso a conhecimentos específicos como também o auxilia a desenvolver a capacidade de se integrar ao mundo. Desde cedo, as pessoas devem aprender sobre a existência de múltiplas culturas, devem ser estimuladas a consumir esses diferentes tipos de Cultura e devem compreender que a Cultura é um dado essencial da vida. Nesse sentido, acredito que a Educação Artística deva recuperar seu status de atividade básica da formação do estudante.  

A produção cultural precisa ocupar um papel central na formação das pessoas. Elas devem crescer se enxergando como um ser de cultura. Esse tipo de aprendizado somado à construção de pólos culturais nas mais diversas regiões do país pode resolver a questão do acesso aos bens culturais no Brasil.