• Edição 209
  • 24 de junho de 2008

Ponto de Vista

Militares e traficantes: que relação é essa?

Raquel Gonzalez

imagem ponto de vistaNo dia 15 de junho, os corpos de David Wilson da Silva, 24 anos, Marcos Paulo Campos, 17 anos, e Wellington Gonzaga da Costa, 19 anos, foram encontrados num lixão na baixada fluminense após os jovens terem sido abordados por membros do Exército, na comunidade da Providência. Eles teriam sido entregues pelos militares a uma facção rival da favela da Mineira. O episódio provocou protestos dos moradores do Morro da Providência e também chamou a atenção da opinião pública e da mídia, já que pôs em evidência um dado até então pouco conhecido: a relação entre traficantes e militares.

O caso suscita ainda a discussão em torno da eficácia da ação militar no Rio de Janeiro e no contato direto com a população. No dia 18 de junho, a juíza Regina Coeli, da 18ª Vara Federal do Rio, determinou a retirada imediata das tropas do Exército dos morros cariocas. O governo, contudo, não foi favorável à decisão e argumentou que a presença do Exército na favela não se deu por força de segurança pública, mas sim como uma ação subsidiária para realização de obras do Projeto Cimento Social, de recuperação de telhados e fachadas de casas do morro. O ministro da defesa, Nelson Jobim, afirmou na última sexta-feira, 20 de junho, que o governo federal discute a possibilidade de uma nova legislação que possibilite às forças armadas ter um estatuto próprio para atuar em operações urbanas, de Garantia da Lei e da Ordem, e ainda citou a atuação no Haiti como modelo de operação.

O Olhar Virtual conversou com o professor Michel Misse, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/ UFRJ), para refletir sobre a associação do tráfico com membros do Exército, analisar em que fundamentos essa relação se baseia e examinar ainda a questão do uso de forças militares, pelo governo, para atuação direta com civis.

Olhar Virtual: Como você analisa a relação entre membros do Exército e o tráfico?

Há muitos agentes públicos que têm relação – direta ou indireta – com mercados ilícitos e com o tráfico de drogas em particular. Assim, sabe-se de ex-reservistas e ex-paraquedistas que participam de quadrilhas de traficantes. No caso do ocorrido no Morro da Providência, evidencia-se mais uma vez o uso de atribuições que conferem o uso da força a agentes públicos de modo ilegal e criminoso.

Olhar Virtual: Que fundamentos explicam essa relação?

Não há relação geral, nem fundamentos. Qualquer funcionário público ou agente da área de segurança pública e justiça criminal pode fazer uso privado da autoridade pública de que está investido, seja transformando-a em “mercadoria política”, seja para fins de vingança pessoal.

Olhar Virtual: O exército está apto a atuar diretamente com a população, em questões de segurança pública, por exemplo?

Não, e nem lhe é exigido pela Constituição. O exército de um país não foi criado para prevenir ou reprimir crimes, mas para matar, se preciso, em defesa do território e dos interesses nacionais. Criminosos devem ser punidos de acordo com a lei e não guerreados, como se fosse um exército inimigo. Mas as Forças Armadas podem ajudar, em termos logísticos, operações policiais de grande envergadura e já vêm fazendo isso no Brasil.

Olhar Virtual: No Haiti, não ocorreram maiores problemas do exército com a população civil. Qual seria então a dificuldade para a instituição militar trabalhar no ambiente das favelas cariocas?

No Haiti, o Brasil está presente como força de paz e não de guerra. Há um equívoco em comparar a missão no Haiti com operações policiais-militares em áreas urbanas de baixa renda, geralmente equivocadas, agressivas e mal planejadas, produzindo aversão à polícia nas comunidades de trabalhadores como são as favelas brasileiras.

Olhar Virtual: Se o envolvimento com o tráfico tivesse sido da polícia civil ou militar, na sua opinião, a repercussão seria menor?

O envolvimento de policiais com o tráfico já existe há tempos e sempre é noticiado pela mídia. Não há qualquer surpresa. A diferença foi o caráter odioso do crime perpetrado por um oficial e soldados do Exército sem aparente ligação maior com o tráfico e os usos políticos que podem ser feitos do episódio. Não se deve confundir os desvios criminosos de conduta de agentes da lei e da ordem com as instituições a que servem, mesmo quando esses desvios são muito freqüentes envolvendo muita gente. As instituições devem e precisam ser preservadas e para isso não pode haver impunidade, principalmente quando crimes envolvem os próprios agentes nos quais confiamos nossa segurança como cidadãos. Seus crimes são mais injustificáveis exatamente pela posição que ocupam.