• Edição 204
  • 20 de maio de 2008

Olho no Olho

Proibição da marcha da maconha: uma discussão sobre legalidade e liberdade



Raquel Gonzalez

imagem olho no olhoA Marcha da maconha – manifestação pela legalização e descriminalização da erva – foi marcada para o dia 4 de maio em dez capitais brasileiras e em mais de 200 cidades pelo mundo. No Brasil, contudo, os Tribunais de Justiça de nove estados, dentre eles o de São Paulo, Rio de janeiro, Ceará, Bahia, Paraíba, Mato Grosso, Minas Gerais, Brasília (DF) e Paraná, proibiram sua ocorrência por julgar o evento um incitador ao uso da droga. Apenas Porto Alegre (RS) não proibiu a manifestação.

Marchas desse tipo, porém, acontecem no país há aproximadamente seis anos. Em maio de 2007, uma manifestação reuniu no Rio de Janeiro cerca de 300 pessoas; a maioria portava máscaras de carnaval ou rostos de políticos, como o do deputado Fernando Gabeira (PV / RJ), que já se declarou favorável à legalização da droga.

Os dirigentes do movimento, revoltados com a decisão da justiça brasileira, promoveram um ato em prol da liberdade de expressão no domingo seguinte, dia 10 de maio, nos mesmos horários e locais onde ocorreria a manifestação pelo uso legal da maconha. O evento, contudo, não obteve a presença de manifestantes e a atenção da mídia esperada.

Para os organizadores da Marcha, o veto da justiça fere os princípios da liberdade e da democracia. Em uma nota de esclarecimento divulgada, afirmam que suas atividades não têm a intenção de fazer apologia alguma ao uso da maconha nem incentivar qualquer tipo de atividade criminosa. Mencionam ainda que os objetivos principais do coletivo são “criar espaços onde indivíduos e instituições interessadas em debater a questão possam se articular e dialogar; Estimular reformas nas Leis e Políticas Públicas sobre a maconha e seus diversos usos”. Segundo os dirigentes do movimento, a liberalização e regulamentação da produção e venda da maconha diminuiriam os problemas causados pelo tráfico.

O Olhar Virtual entrevistou Juliana Neuenschwander Magalhães, diretora da faculdade de direito (FD/UFRJ), e Heloi José Fernandes Moreira, professor da Escola Politécnica (POLI/UFRJ), para tentar esclarecer a polêmica questão. Confira.

Heloi José Fernandes Moreira
Professor da Escola Politécnica (Poli/UFRJ) e Presidente do Clube de Engenharia

Não concordo com a idéia de que o veto da justiça à realização da passeata da Marcha da maconha feriu o princípio da liberdade de expressão. Na minha opinião, a marcha incitaria sim o uso da maconha. Incitaria na medida em que, de modo implícito, estaria dizendo a inúmeras pessoas ainda em estágio de construção dos seus valores que o consumo da maconha é natural, que qualquer pessoa pode consumir, que isto não provoca qualquer dano físico ou conseqüências para a saúde de qualquer um.

No século passado, principalmente nos anos 40 e 50, fumar um cigarro de tabaco era elegante e glamoroso. Inúmeras foram as “fitas cinematográficas” que exploraram cenas de conquistas e seduções amorosas. Fumar era moderno e simbolizava status. Naquela época, não havia ainda estudos profundos e prolongados sobre os malefícios do cigarro de tabaco. Hoje existe um conhecimento e uma consciência sobre o mal que ele faz e sobre os custos para uma nação cuidar dos seus dependentes e de suas vítimas. Há um esforço para a redução do seu consumo e este esforço passa pela proibição de anúncios que associavam poder, lazer, prazer, juventude e modernidade ao ato de fumar tabaco.

O mesmo está acontecendo com as bebidas alcoólicas. Já impuseram horários aos anúncios e diversas personalidades não aceitam fazer parte destes comerciais, pois estão cientes que acabarão induzindo muitas pessoas ao vício.

Eu não acredito que as mudanças na nossa legislação em favor da liberalização da maconha diminuiriam ou acabariam com o tráfico e a violência. Entendo que, atualmente, o poder público praticamente perdeu o controle sobre o cotidiano da maioria das cidades brasileiras. Não é legal uma padaria vender cigarros, pães, queijos, sanduíches, salgadinhos, doces e bebidas? Por que então encontramos inúmeras pessoas vendendo e outras tantas comprando esses mesmos produtos pelas ruas das cidades? Pelo que se vê, o fato da venda de uma mercadoria estar legalizada não significa necessariamente venda e distribuição ordenadas e controladas. Todos sabem que é proibida a venda de bebidas alcoólicas e cigarros para menores de 18 anos. E todos sabem também que, na prática, não há qualquer controle sistemático sobre essas operações.

Qualquer um que apresente algum tipo de moeda pode facilmente adquirir esses produtos.

Os que são viciados e não têm recursos próprios para obter a droga, obviamente continuarão usando da violência na obtenção de recursos para satisfazer suas necessidades. Legalizada ou não, na minha opinião, não haverá mudança significativa.

Juliana Neuenschwander Magalhães
Diretora da Faculdade de Direito (FD/UFRJ)

A proibição, no meu entender, fere a liberdade de expressão, que é um direito constitucionalmente garantido e um dos pilares de qualquer Estado Democrático de Direito. Não podemos transigir com direitos fundamentais, sendo nosso dever, de cidadão, apontar toda e qualquer frustração destas garantias da democracia. Por isso, merece aplausos a iniciativa da Comissão de Direitos Humanos da OAB, quando esta realizou um ato em favor da liberdade de expressão, iniciativa à qual a Faculdade Nacional de Direito aderiu.

As manifestações livres do pensamento são sempre saudáveis para a democracia. No caso, trata-se de uma manifestação por uma alteração legislativa: a marcha propôs o tema da legalização da maconha. Ninguém está proibido de propor e discutir alterações ao direito vigente. Pelo contrário: se tivéssemos esse bom hábito sempre, se transformássemos sempre as mudanças legais em temas de interesse da opinião pública, o processo de fortalecimento da democracia participativa só avançaria.

No caso, deve-se distinguir a ilicitude da maconha, de seu uso e comercialização, de uma pretensa ilicitude em se protestar contra o tratamento legal dado à matéria. É incompatível com a democracia e com o direito de um Estado Democrático a proibição do protesto. E isso não se justifica nem sob o argumento de que a marcha incitaria o uso, o que, na minha opinião, é apenas um argumento que tem por função desviar o foco da questão e por isso extremamente hipócrita.

Exatamente para não fortalecer esta confusão, prefiro no momento não me pronunciar quanto à legalização da maconha. Pondero apenas que, numa democracia, esta é uma decisão que permanece sempre possível, que não se colocará nunca como "questão fechada". No direito, o que é ilícito pode vir a se tornar a ser lícito. Nada é ilícito por si, por natureza, já que o direito é produto de uma decisão e pode, por uma outra decisão, ser modificado. Os "movimentos de protesto" têm exatamente esta função: a de levantar este tipo de questionamento. Niklas Luhmann, sociólogo alemão com quem estudei, falava que os movimentos de protesto são como cães que ladram - barking dogs. Eles podem ser denominados assim porque fazem barulho e porque, assim como cães, os movimentos são guardiães da democracia.

Proibir não significa diminuir o consumo, assim como liberar não significa, necessariamente, um aumento do consumo das drogas hoje ilícitas. A sociedade é mais complexa do que essa equação linear possa sugerir.  O consumo e comércio das drogas, no Brasil, não são desvinculados de questões estruturais como pobreza e desigualdade social. A violência, certamente, é muito mais produto da estrutural desigualdade social do que do consumo de drogas ilícitas. Enquanto as pessoas estiverem à margem da sociedade e, nela, não existirem como sujeitos portadores de direitos, sua sobrevivência será dada por atividades também marginais.

É possível que o comércio de drogas, numa situação de licitude das mesmas, passe a se dar na tabacaria – como pensou Chico Buarque numa música recente. Os que hoje dele se ocupam terão, entretanto, que procurar uma outra forma, provavelmente também ilícita, de sobrevivência às margens da sociedade. Uma forma possivelmente violenta, porque mais violenta é a exclusão social; e a culpa, então, não será das drogas.