• Edição 196
  • 25 de março de 2008

Olho no Olho

ONGs: os dois lados da moeda

Julia Vieira

imagem olho no olho

As Organizações não-governamentais (ONGs) são associações do terceiro setor que se declaram com finalidades públicas, sem fins lucrativos e desenvolvem ações em diferentes setores da sociedade, visando complementar o trabalho do Estado.

Mas nem sempre a prática segue à risca a teoria e, recentemente, mais um escândalo rondou o terceiro setor. Desta vez, a crise aconteceu porque dirigentes do Instituto Nacional de Formação e Assessoria Sindical (Ifas), ONG ligada ao movimento sindical e ao PT, receberam 4,6 milhões de reais do governo federal e admitiram não poder prestar contas de como a quantia foi gasta.

Os recorrentes casos de corrupção culminaram na instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das ONGs e, acima disso, no desgaste dessas associações junto à opinião pública, o que acabou por refletir sobre as ONGs que, de fato, trabalham para a promoção da cidadania e do bem-estar social junto às populações de baixa renda.

Para comentar a situação atual das ONGs, o Olhar Virtual entrevistou Dália Maimon, professora do Instituto de Economia, e Dores Lacombe, fundadora da Associação Saúde Criança Recomeçar, organização que, há mais de uma década, presta assistência aos pacientes de baixa renda do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira (IPPMG).

Dália Maimon
Professora do Instituto de Economia

O termo Terceiro Setor é de origem norte-americana e está associado à isenção fiscal atribuída às fundações dos Estados Unidos, no início do século XX. A vida associativa constitui um campo extremamente rico e variado em diferentes países. Este conjunto de instituições proporciona importantes serviços à comunidade e contribui de forma significante para a vida social e econômica do país.

Segundo o Global Civil Society, o Terceiro Setor, incluindo as organizações religiosas, investiu U$1,3 trilhão no final da década de 1990. Foram empregadas, em horário integral, 39,5 milhões de pessoas, das quais 21,8 milhões eram remuneradas e as demais 12,6 milhões representavam força de trabalho voluntário. Estes valores são correspondentes à sétima economia mundial e ficam à frente de países como Itália e Brasil.

Devido a este e a muitos outros fatores, há um reconhecimento por parte das Nações Unidas e dos bancos de desenvolvimento, que prevêem recursos específicos para ONGs. Isto se deve à independência e flexibilidade de atuação no interesse público e ao descrédito na classe política, que somado à difusão da ideologia neoliberal desacreditou o aparelho do Estado como motor de ação social.

Embora, historicamente, as ações voluntárias e assistenciais tenham sido desenvolvidas pela Beneficiência Portuguesa, é possível dividir a história das ações filantrópicas em quatro momentos distintos.

Em uma fase em que o Estado era populista, entre 1946 e 1964, ocorreram associações entre o governo e o empresariado, caracterizando a filantropia partilhada. Surgiram diversos movimentos comunitários, além do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), do Serviço Social do Comércio (SESC) e do Serviço Social da Indústria (SESI).

Durante o governo militar, a filantropia de clientela foi marcada pela assistência aliada a uma forte repressão. Apareceram diversas organizações sociais como a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM), as Comunidades Eclesiais de Base (CEBS) e algumas Associações Comunitárias. Na conjuntura de transição para a democracia, eclodiram os movimentos de defesa dos direitos humanos e as ONGs, caracterizando um período de filantropia vigiada. A partir da instauração da democracia, tem início a fase da filantropia democratizada, com ONGs, organizações civis e fundações empresariais.

Nos anos 1990, duas tendências se acentuaram como resposta às demandas sociais. Houve a diminuição do atendimento público acompanhada, muitas vezes, pela privatização de parte destes serviços, além da publicização do privado, com um aumento crescente da participação das empresas e do Terceiro Setor nas ações sociais.

Com efeito, a difusão do modelo neoliberal incentivou a expansão do Terceiro Setor no Brasil. Por um lado, o déficit público e, por outro, a redução voluntária das ações do Estado na economia deixaram um espaço para expansão de ações sociais e ambientais. O ex-ministro Bresser Pereira introduziu um novo marco legal das Organizações Sociais que viabilizou a estruturação das ONGs e do voluntariado, com a criação de leis para o voluntariado, para a filantropia, e para as organizações da sociedade civil de interesse público, além de ter sido criado um Termo de parceria.

Assim como governos e empresas privadas, as ONGs são suscetíveis à corrupção. Há governos e governos; há empresas e empresas; e há ONGs e ONGs. Neste caso específico, chegam aos jornais, em casos escandalosos, associações criadas para legitimar contratos sem licitação e não organizações com trabalhos reconhecidos. Infelizmente, a imprensa não reserva espaço para relatar trabalhos comunitários de ONgs que respondem à demanda de serviços sociais e são reconhecidas pela comunidade onde desenvolvem suas ações.

Apesar do esforço existente, a dívida social do Brasil não pode ser resolvida por um único ator. O Estado, o setor privado e o Terceiro Setor, através de parcerias, são capazes de, juntos, conjugar ações para preencher as justas reivindicações da população excluída.

Dores Lacombe
Fundadora da Associação Saúde Criança Recomeçar

Durante os cinco anos que morei na Inglaterra, tive muito contato com trabalhos sociais e com a pobreza. Ao retornar ao Brasil, tive a idéia de trabalhar em uma ONG brasileira. Em 1997, depois de ter passado pela Renascer, fundei a Associação Saúde Criança Recomeçar, que é a nona associação da Rede Renascer.

Até hoje, encontro as maiores dificuldades, principalmente em relação aos órgãos governamentais, já que ali a burocracia é muito grande. Mas os problemas não residem apenas na realização de parcerias. Nossa principal dificuldade é desenvolver a matéria-prima de nosso trabalho, que são as mães das crianças atendidas no IPPMG.

É muito difícil, por exemplo, incutir a noção de cidadania nessas mães, até porque, na maior parte das vezes, elas não tiveram preparo ou Educação que lhes permitisse lutar pelos direitos de cidadãs.

Os casos de corrupção em ONGs só colaboraram para aumentar essas dificuldades. Não que o processo de promover parcerias com outras instituições tenha sido comprometido, mas, atualmente, temos que dar mais explicações para nossos potenciais parceiros. Hoje em dia, por exemplo, não requisitamos recursos financeiros sem antes mostrarmos a auditoria que, anualmente, realizamos nas contas de nossa ONG.

Além disso, o preconceito em relação à ONG aumentou muito. A imagem dessas associações está muito desgastada junto à sociedade; ONG virou um verbete quase de sentido pejorativo. As pessoas encaram as ONGs com tamanha desconfiança que eu mesma evito falar que trabalho em uma. Acho até que a terminologia “organização não-governamental” deveria ser suprimida e substituída por outra.

De qualquer forma, acho que podemos, sim, reverter essa imagem negativa que a sociedade vem tendo das ONGs, até porque existem muitas pessoas sérias e bem intencionadas trabalhando e lutando para isso. Como dizia Herbert de Souza, o Betinho, ‘não sei se vamos apagar o incêndio da floresta, mas a nossa parte estamos fazendo’.

Tenho 72 anos e, às vezes, diante das dificuldades e até da falta de reconhecimento, vem a vontade de desistir de tudo, mas não consigo parar de trabalhar. Ver uma mãe humilde feliz não tem preço, é algo muito gratificante. No fim de tudo, esse trabalho é muito contagiante.