• Edição 184
  • 13 de novembro de 2007

De Olho na Mídia

A mídia, a violência e a doença mental

Stéphanie Garcia Pires – AGN/Praia Vermelha

imagem ponto de vista

Quando atos violentos cometidos por doentes mentais repercutem na mídia, o discurso pode aprofundar preconceitos que já rondam a sociedade. Entre eles, a reivindicação de que pessoas com transtornos psíquicos sejam excluídas do convívio social. Foi o que aconteceu no caso de Ademir Oliveira Rosário, na zona norte paulista. Condenado anteriormente pelos delitos de roubo, assassinato e atentado ao pudor, ele foi preso, mas integrou o programa de desinternação progressiva de São Paulo, que prevê a reintegração gradativa à sociedade de criminosos com debilidades psíquicas. Ganhando liberdade provisória após avaliação em hospital psiquiátrico, Ademar voltou para casa. No entanto, ao sofrer alucinações, atacou diversas pessoas e assassinou dois irmãos. A fim de analisar o papel da mídia na construção de discursos referentes a crimes deste tipo, o Olhar Virtual conversou com Elie Cheniaux, mestre em Psiquiatria, Psicanálise e Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e psiquiatra no Centro Integrado de Pesquisas do Instituto de Psiquiatria (CIPE-IPUB-UFRJ).

Elie destaca o fato de que grande parte dos crimes é cometida por indivíduos saudáveis mentalmente. Além disso, entre as pessoas que sofrem com as várias manifestações de doenças mentais, os que cometem delitos ou ações violentas são poucos. O psiquiatra afirma que isso ocorre principalmente na presença de desvios como delírios de perseguição, a perda do controle de impulsos e a síndrome do transtorno bipolar. No último caso, por exemplo, o doente sente-se poderoso e assume comportamentos de exagero, tal como o gasto excessivo de dinheiro, endividando-se.

Comentando uma situação hipotética, de acordo com o psiquiatra, se um homem com delírios de perseguição interpreta seu vizinho como uma ameaça, é possível que ele o mate. Para o doente mental, este ataque violento foi meramente uma defesa. Para o resto da sociedade, dependendo do discurso midiático, isso pode figurar como um assassinato cruel e gratuito.  A observação relevante é que aquele doente, em seu delírio, tornou-se perigoso apenas para uma pessoa, ou seja, por quem se sentia ameaçado. Logo, conclui Elie, ele não deveria ser condenado a passar anos de sua vida em um hospício penitenciário — e isso pode soar como impunidade para a população que desconhece a complexidade do perfil psicológico deste assassino em questão.
O especialista lembra que o código penal prevê crimes cometidos por doentes mentais e aplicação de penas alternativas. No processo, constatada a debilidade do criminoso, investiga-se se o delito está ligado à doença mental. “Se o indivíduo sofre com delírios de perseguição, mas rouba um banco, sua atitude não foi influenciada por sua doença”, explica Elie. Em seguida, o esforço é para descobrir se o réu não tinha consciência de que seu ato era criminoso ou se, tendo consciência, ele não tinha controle sobre seus impulsos. Tudo isso influirá na condenação escolhida.

Na repercussão midiática de violência cometida por pessoas que precisam de orientação psiquiátrica, normalmente coloca-se um dilema. Mesmo considerando um assassinato cometido por alguém que desconhece a gravidade de seu ato ou não consegue controlar seu impulso agressivo, familiares da vítima sofrem conscientemente a perda de alguém e exigem punição severa, por exemplo, a privação definitiva da liberdade do doente mental. Contra isso, Elie considera sensato que, ao noticiar casos deste tipo, seja consultada a opinião de um especialista e relevado o máximo de informação a respeito do quadro psicológico do agressor. Doenças mentais são muito específicas e ações violentas resultadas dos distúrbios sofridos necessitam de análises delicadas.

Um dos grandes problemas que atinge não somente a mídia como também a opinião pública está relacionado a crimes em série ou com requintes de crueldade. Os serial killers, como o maníaco do parque, são normalmente caracterizados como doentes mentais, o que contribui para o preconceito criado em torno daqueles que realmente sofrem com algum distúrbio psicológico. O psiquiatra defende, assassinatos ou agressões cometidos por verdadeiros doentes mentais têm como principal elemento o fato de serem impulsivos. “Serial killers premeditam seus crimes, dedicando a eles raciocínios complexos demais, e isso é algo que uma pessoa debilitada psicologicamente não seria capaz de fazer”, argumenta Elie.

A mídia torna-se preconceituosa, alerta o especialista, principalmente se cair na tendência de generalizar situações bastante específicas. Primeiro, é importante não perder de vista a raridade de doentes mentais inclinados a comportamentos agressivos. Segundo, a internação nem sempre é necessária, muito menos por períodos prolongados. “Se mantida uma medicação adequada, a maioria se torna apta ao convívio social, mesmo os que sofrem com as doenças mentais citadas anteriormente (delírios de perseguição e falta de controle sobre os impulsos)”, afirma o psiquiatra.  Ele enfatiza, ainda, “é essencial diferenciar violências impulsionadas por doenças mentais daquelas cometidas por simples maldade” (como o caso dos serial killers).

Para concluir, Elie remete à urgência de tirar do senso comum a noção de que doentes mentais são, por sua instabilidade psicológica, perigosos. Segundo o especialista, essa interpretação é errada, apela à propensão das pessoas a entender as debilidades psiquiátricas racionalmente. Há, claro, casos extremos em que a doença mental impossibilita o paciente de viver sem cuidados específicos de uma clínica de internação. Porém, ao contrário do que muitos pensam e a mídia às vezes reforça, a exclusão definitiva de um doente mental é quase sempre injustificável. Cabe lembrar que explosões agressivas de um doente mental muitas vezes ocorrem por um motivo específico, portanto, dificilmente constituirão um comportamento rotineiro. Sujeito a um tratamento ideal, o perigo que representou um dia uma pessoa com debilidades psíquicas pode jamais se repetir.

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