• Edição 176
  • 18 de setembro de 2007

Olho no Olho

Crianças, voltei!

Julia Vieira e Nathália Perdomo

imagem olho no olho

No dicionário, brega significa: que ou quem não tem finura de maneiras; cafona; de mau gosto; sem refinamento do ponto de vista de quem julga; de qualidade reles, inferior. No entanto, esse termo foi perdendo o tom pejorativo e ganhou reconhecimento no cenário cultural.

Personagens esquecidos durante muito tempo pela mídia, como Waldick Soriano, Odair José e Elke Maravilha são revisitados pelo público e ganham um novo status. Ao invés de serem considerados bregas ou inadequados, são inspiração para uma geração que não vivenciou a época de destaque desses artistas.

Apesar do teor mercadológico por trás desse ressurgimento e, ao contrário do que as elites e a mídia elitizada procuravam demonstrar condenando o brega, há um significado social e estético peculiar a esse universo que é rico e indispensável para a composição da cultura brasileira.

O Olhar Virtual conversou com Tiago Lemos, professor da Escola de Comunicação e com Julia Rezende, diretora do filme Elke,* procurando entender os motivos pelos quais esse fenômeno de resgate de personagens acontece e ganha força em determinados segmentos sociais.

O filme Elke estréia no dia 1º de outubro, no Cine Odeon.

Thiago Lemos Monteiro
professor da Escola de Comunicação

“A cultura brega foi bastante rechaçada nos anos 70, durante a ditadura militar, pois em uma fase bastante política do país foi tida como alienadora; foi acusada de não tratar das problemáticas importantes do país e de pensar apenas em divertir as massas. Na realidade, seus aspectos políticos passavam despercebidos, já que o crivo da censura tinha outros foco.

“Nesse contexto, os prazeres populares, que circulavam em programas como ‘Chacrinha’ e em shows de calouros, eram tachados negativamente e ficavam afastados da classe dominante. Enquanto passavam pela fase ‘Chico Buarque e companhia’ as classes média e alta consideravam essas manifestações culturais antagônicas às suas como bregas e inadequadas.

“Seguindo tendências pop, vimos na década de 80 uma fusão entre as culturas popular e erudita, uma mistura de características. Aspectos marcantes do luxo e do lixo passaram a circular entre camadas distintas da sociedade. Os conceitos fixos de popular e sofisticado se dissolvem e transitam de forma homogênea.

“Passamos por um momento em que a mídia traz à tona ícones da década de 70, realizando curtas, exposições e documentários, com artistas como Waldick Soriano, Elke Maravilha e Rita Cadillac. Esses fenômenos podem ser explicados por duas razões: alteração do espaço de circulação e diferenciação cultural.

“A bagagem cultural de um indivíduo se transforma em sua marca de distinção pessoal. A apreciação do brega, trash ou cafona por classes médias possibilita a diferenciação do próprio indivíduo em seu meio. Para essas pessoas, é necessário ter uma sensibilidade a mais para enxergar elementos dessas manifestações culturais, invisíveis aos demais, é atribuir valores às suas percepções.

“A mídia funciona de modo a recolocar produtos e imagens em novas esferas, fazer uma nova mediação, legitimar produtos antigos em uma nova classe, em um novo mercado consumidor. Caetano Veloso, por exemplo, gravou para o filme Lisbela e o prisioneiro, a música “Você não me ensinou a te esquecer” de Fernando Mendes e tirou esta canção de seu antigo status de brega.

“As indústrias souberam aproveitar muito bem o momento e tomaram para si um nicho mercadológico não tão expressivo, mas importante. Investem em Festas Ploc, fenômeno por levar para noite carioca os antigos hits, que há alguns anos seriam capazes de abalar o sucesso de qualquer evento.

“Os padrões de consumo continuam diferentes. Enquanto na década de 70 as camadas mais seletas da sociedade apreciavam MPB, as classes baixas ouviam brega. Agora as classes baixas encontraram novas formas de entretenimento e as classes altas recorrem ao brega, repaginado.

“O brega só virou cult para a classe média. Para os de baixa renda, o brega ainda é brega. Não é por que foi relançado que Waldick Soriano virou hit das classes populares. Esse fenômeno de valorização de manifestações ultrapassadas é única e exclusivamente voltado para a classe média. O fato de agora os universitários escutarem músicas antes ouvidas por caminhoneiros, não aproxima, de maneira nenhuma os dois grupos. A cultura popular continua sendo, na maioria das vezes, rechaçada pelos mais cultos, que vêem o que o povão escuta como lixo cultural.”

Julia Rezende
diretora do filme Elke

“Conheci a Elke há dois anos quando eu produzia o Zuzu Angel e fiquei fascinada. Ela estava ‘desmontada’, sem maquiagem, sem peruca. Foi quando surgiu um desejo de descobrir quem era a verdadeira Elke, desligada dos mitos e estereótipos. Ela é múltipla, devido às suas várias raízes, suas experiências, sua cultura. Eu não saberia encaixá-la em uma categoria. Vários grupos sociais tentam se apropriar dela — o movimento punk, o movimento gay, os presidiários, as prostitutas. Portanto, ela circula por todos esses ambientes com desenvoltura.

“Hoje, é notável uma revalorização, uma reciclagem de personalidades do passado, ao invés de aparecerem como figuras marginais, que seria o ´normal´, estão sendo muito aceitas e incorporadas à cultura de massa. Em relação à Elke, nos últimos dois anos, esse resgate é mais visível. Alguns apontam o filme Zuzu Angel como responsável por isso, em que pôde ser vista uma Elke politizada, com uma densa visão social.

Esta renovada acolhida de Elke é motivo de uma exposição sobre sua vida, na Caixa Cultural, em São Paulo, em que o livro de assinaturas não registra apenas nomes, mas também agradecimentos admirados com a sua personalidade. Ela representa uma figura libertadora. Nesse ponto, principalmente, ela se conecta com o público, apesar de ainda ser pouco compreendida e muito estereotipada. As pessoas não sabem, ao certo, quem ela é: um palhaço, um travesti, um homem.

“Acredito que ela e diversas outras personagens da década de 70 e 80 vêm conquistando espaço e são um fenômeno de sucesso junto ao público, sobretudo por terem consistência. As figuras do passado têm alguma coisa a dizer que os “big brothers” não têm. Nesse sentido, a Elke tem um diferencial, porque desde jovem ela construiu uma estética, não criou um estilo de uma hora para outra, nem pensou em estratégias para reaparecer na mídia, assim como o Chacrinha e várias outras personalidades hoje resgatadas. Em contrapartida, as figuras televisivas atuais são muito vazias, superficiais e valorizam a beleza acima de tudo."

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