• Edição 163
  • 19 de junho de 2007

Olho no Olho

Trabalho infantil: vergonha que persiste

Nathália Perdomo

imagem olho no olho

O assunto não é novidade e persiste por muitos anos. A exploração infantil é um dos quadros mais vergonhosos do Brasil, onde cerca de três milhões de jovens de até 16 anos trabalham, de acordo com a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apesar da proibição constitucional do trabalho de crianças e adolescentes, salvo na condição de aprendiz.

Paradoxalmente, o país tem uma das legislações mais avançadas da América Latina de proteção à criança e ao adolescente. Na década de 90, foi criado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil — PETI — um dos mais importantes da rede de proteção social, que busca promover melhorias nas condições de vida desse grupo, tirando-os das condições marginais.

No último dia 12, comemorou-se o dia mundial de combate a essa prática. A data foi instituída em 2002, em virtude da publicação do relatório da Conferência sobre o Trabalho Infantil, em Genebra, e tem como fim sensibilizar toda a sociedade e gestores públicos para implementação das suas convenções, na prevenção e erradicação da mão-de-obra infantil para que a infância seja, de fato, um tempo de brincar e aprender, de estudo e lazer.

Para discutir e despertar reflexões acerca do assunto, o Olhar Virtual conversou com Ricardo Rezende Figueira, professor da Escola de Serviço Social (ESS/UFRJ), que divide a coordenação do Grupo de Pesquisa do Trabalho Escravo Contemporâneo (GPTEC) com a jornalista e pesquisadora Sônia Benevides. Entrevistou também Maria Celia Nunes Coelho, professora do Instituto de Geociências (IGEO/UFRJ).

 

Ricardo Rezende Figueira
professor da ESS

"Dados publicados em 2005 pelo IBGE revelaram que, nos últimos anos, teria havido uma diminuição do número de crianças em atividades laborais. No entanto, os números ainda preocupam. Há formas curativas de enfrentar problemas dessa natureza, porém, há questões que exigem mudanças de natureza macro-econômica mais profundas. Políticas assistencialistas do Governo — Bolsa Família, Bolsa Escola, Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o PETI — por exemplo, são muito bem-vindas, devem permanecer. Mas o problema não é resolvido somente com ações pontuais.

A concentração de renda, o desemprego, a miséria proporcionam a existência de reserva de mão-de-obra infantil vulnerável. Essa pobreza contribui para que muitas crianças e adolescentes sejam expostos a diversas situações de risco, violência e exploração, devido à inserção precoce no mundo do trabalho, muitas vezes em condições extremamente penosas e degradantes.

Segundo levantamento da Organização Internacional do Trabalho — OIT, publicado pelo jornal O Globo, em maio do ano passado, 69% dos casos de exploração de menor conhecidos eram ligados à agricultura, 22% a serviços e 9% à indústria. Na agricultura observa-se a atividade infantil familiar, que nem se pode chamar de exploração, no sentido da mais-valia. A criança trabalha para ajudar a família. Em outros casos, as crianças são exploradas e trabalham como escravos. No meio rural, as áreas de fruticultura e carvoaria vegetal são as que mais comportam a presença infantil.

Houve um episódio marcante em 1999, em Santo Antônio de Jesus, na Bahia, onde ocorreu uma explosão de uma fábrica de fogos de artifício. Das 64 pessoas mortas, 20 eram crianças, de 5 a 12 anos, que manuseavam materiais explosivos e tóxicos. Diversas organizações estão acompanhando o caso, que foi denunciado na Comissão de Direitos Humanos da OEA. Em visita de monitoramento feita em maio de 2006, a Justiça Global pôde constatar que muitas crianças da cidade continuavam a enrolar “estalinhos”. A Rede Social Justiça e Direitos Humanos, e o Movimento Humanos Direitos — MhuD — são outras organizações humanitárias que se ocupam da questão. Este último é uma associação formada por artistas e profissionais de diversas áreas, com um olhar especialmente voltado para os problemas do trabalho escravo e dos abusos praticados contra crianças e adolescentes.

Estimativas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) mostraram que um milhão de crianças entram no mercado do sexo no mundo a cada ano. Dessas, 10% estariam concentradas no Brasil, nas Filipinas e em Taiwan. O estupro e o homicídio são recorrentes nessas atividades e a exploração sexual está vinculada, principalmente, ao turismo. Entre 2000 e 2006, de acordo com O Globo, o número de crianças envolvidas com atividades forçadas diminuiu em 5 milhões, contudo 122 milhões ainda trabalhavam. Os dados também revelaram que 64% do trabalho infantil mundial se concentrava na Ásia.

No Brasil, de acordo com a Comissão Pastoral da Terra — CPT, cerca de 100 crianças estiveram envolvidas, no ano passado, com relações de trabalho escravo. Entretanto, o crime é oculto, o que significa que esses números não são absolutos. Há muitos menores de idade sendo explorados e ninguém tem pleno conhecimento da realidade. Na maioria das vezes, quando o desfecho é terrível é que os fatos acabam tornando-se públicos.

Os impactos causados por essa prática ilegal são muitos, entre eles, a evasão escolar, a impossibilidade de viver a própria infância, a subnutrição. Portanto, representa uma violência física, moral e simbólica, em que as crianças são submetidas a condições precárias, impedidas de ter uma vida normal, adequada a sua idade, que seria correr, brincar, estudar. A brincadeira faz parte do processo educativo e da maturidade emocional".

Maria Celia Nunes Coelho
professora do IGEO

"A exploração da mão-de-obra infantil em solo brasileiro causa um profundo mal-estar em todos que se preocupam com uma sociedade mais justa e, especialmente, com a proteção integral de crianças e adolescentes. O trabalho infantil no meio rural, associado à reprodução da unidade familiar de subsistência ou ao trabalho nas fazendas é uma questão antiga e grave, sobretudo nos Estados mais pobres do Nordeste e da Amazônia brasileira, como Piauí e Maranhão. Também observa-se forte presença deste tipo de exploração em casas de terceiros, nas capitais e cidades do interior do Brasil.

A sua dimensão foi ampliada, em virtude do aumento do número de desempregados — no campo e na cidade —, da informalidade e dos negócios ligados às atividades ilegais (nas carvoarias, nas olarias, nos garimpos clandestinos, na prostituição, nas empreitadas diversas, no contrabando de drogas, armas, madeira). Com o processo de urbanização, observa-se uma tendência crescente ao deslocamento do trabalho infantil do meio rural para as áreas urbanas, embora ainda se concentre, majoritariamente, no campo, segundo dados sobre o Brasil no Relatório Global de 2006, da OIT.

Essa prática está presente na Amazônia oriental dos pólos minerais, guseiros e madeireiros do Pará e Maranhão; na Amazônia ocidental dos garimpos (não raramente em áreas indígenas), da agricultura e do extrativismo vegetal e ainda na fronteira internacional (Arco Norte — que abrange a faixa de fronteira dos estados do Amapá, Pará, Roraima, Amazonas e Acre). Na Amazônia, particularmente, o migrante rural, em geral, frustrado em suas estratégias de se reproduzir enquanto produtor familiar ou trabalhador rural/urbano bem remunerado, busca no trabalho infantil meios de ampliar as possibilidades de sobrevivência familiar e, dessa forma, alterar a posição social do futuro adulto e a de seus familiares.

As pesquisas realizadas por mim e pelo professor Maurílio de Abreu Monteiro, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (NAEA/UFPA) nos últimos dois anos — no médio e alto vale do Rio Capim, no município de Paragominas (ex-município Pólo Madeireiro) —, revelaram que a produção ilegal ou clandestina de carvão vegetal segue pela rodovia Belém-Brasília para as guzerias (localizadas nos municípios paraenses e maranhenses — situados ao longo da Estrada de Ferro Carajás) e está associada ao trabalho escravo de adultos e crianças.

Nossos estudos sobre mineração na Amazônia oriental — financiados pelo CNPq e Fundação FORD — revelaram que as grandes empresas não empregam crianças, porém o trabalho infantil e/ou trabalho escravo vinculam-se, por vezes, aos garimpos clandestinos, como foram os casos de Itaituba e Serra Pelada, no Pará e o garimpo de Lourenço, no Amapá.

O trabalho infantil revela dramas repletos de elementos psicoanalíticos, segundo os quais os modos ou condições de vida são por elas descritos como um misto de ingenuidade e de complexidade, de inquirições emocionais cheias de perplexidade, diante de cidadanias atuais e futuras que lhe são e serão negadas. Indagamos, então: que sociedade é esta que permite a violação dos direitos de crianças e adolescentes negando-lhes o presente e o futuro? Pode ser mesmo este considerado um ‘país do futuro’?

Não sou contrária a governos populares, implantadores de políticas assistencialistas, mas receio que sejam apenas de conveniência eleitoreira. Tais políticas não são a solução, mas em face da gravidade e da premência da erradicação do trabalho infantil, elas podem ser vistas como primeiros passos no processo de mudanças sociais. O problema é que elas são, na maioria das vezes, consideradas fins e não meios.

Desta maneira, a eficácia da Bolsa Escola, por exemplo e as políticas de geração de emprego e renda ficam comprometidas, pois criam atividades de baixa qualificação, baixo poder aquisitivo e que são desvalorizados pela lógica capitalista. As saídas, que não são novidades, estão na ampliação dos dinamismos econômicos municipais, na tentativa de conter a evasão escolar, no acesso ao ensino de qualidade, vinculado a um projeto de Nação e não de formação de consumidores, entre outras políticas sociais".