• Edição 131
  • 14 de setembro de 2006

Olho no Olho

Vale-cultura: democratização da cultura ou medida assistencialista?

 

Amanda Wanderley

imagem olho no olho

O projeto de lei do deputado Múcio Monteiro que propõe a criação do vale-cultura para os trabalhadores de baixa-renda, contratados por pessoas jurídicas, está sendo analisado pela Câmara e encontra-se em processo conclusivo. Caso a lei seja aprovada, o vale será utilizado exclusivamente para eventos de natureza cultural, como peças teatrais, espetáculos de música, de dança, de mímica e congêneres; museus; cinemas; circos; zoológicos; artes plásticas; entre outros do mesmo gênero. O custo desse benefício, cujo valor não poderá exceder 10% do salário mínimo será de inteira responsabilidade do empregador, que não terá obrigatoriedade em fornecê-los a seus empregados.

O deputado acredita que as boas experiências adquiridas com o programa de alimentação do trabalhador e com o vale-transporte recomendam veementemente que o Poder Público assuma idêntica postura em relação à cultura. “O Brasil do Fome Zero precisa dar um passo além e fomentar com igual zelo a cultura de sua população”, ressaltou Múcio ao justificar sua proposta. “Sem um salário suficiente para sustentar sua família, o trabalhador limita sua existência ao básico, obtendo acesso aos bens culturais apenas mediante a televisão. Certamente não e desejável que o universo cultural do cidadão brasileiro se restrinja a um único meio de comunicação em massa”, completou o deputado.

Para discutir até que ponto a criação do vale-cultura é válida, ou seja, uma maneira de democratizar a cultura, e não uma medida assistencialista, o Olhar Virtual conversou com o coordenador do Fórum de Ciência e Cultura, Carlos Tannus, e com a professora da Escola de Serviço Social, Rosemere Maia.

 

Carlos Tannus
Coordenador do Fórum de Ciência e Cultura

"O vale-cultura é uma proposta interessante, mas algumas barreiras devem ser impostas para que ele não se torne mais uma forma de troca, como se fazia com o vale-transporte. Deve haver um sistema de cartão que só poderá ser aceito sob determinadas condições. É preciso ter certeza de que esse vale será aplicado efetivamente no acesso aos bens culturais, que é uma necessidade urgente do povo brasileiro.

O vale-cultura é importante, até mesmo porque nem só de pão vive o homem, ele vive também do alimento do espírito. E o alimento do espírito começa, paralelamente com a cultura, com a educação, que é outro tema extremamente problemático do Brasil. Os sucessivos governos não têm uma política educacional correta, que promova o jovem brasileiro, para que esse jovem possa fazer um juízo crítico da realidade em que ele vive, da sociedade em que ele está inserido. Essa capacidade crítica depende fundamentalmente da educação. É evidente que a cultura de maneira genérica complementa, mas é necessário reforçar que a educação é um conjunto de coisas, englobando também a cultura se pensarmos de maneira mais geral.

É possível afirmar que talvez o vale-cultura possua um caráter assistencialista, mas, para quem falta tudo, ele pode cumprir um papel importante, o de estimular as pessoas a buscarem diversão, lazer, assistindo a peças teatrais ou filmes, atividades que não constituem a realidade de grande parte da população, principalmente dos que estão distantes dos grandes centros. Mas reforço que isso só será plenamente possível com educação séria e firme. Uma educação de qualidade, gratuita e pública é condição indispensável para a evolução desse país, para que o Brasil tome a dianteira e cumpra o destino que ele tem: o de ser uma grande potência. "

Rosemere Maia
Professora da Escola de Serviço Social

“Ao meu ver, esse projeto não confere qualquer garantia à maioria da população que se encontra hoje efetivamente excluída da cultura, porque ele prevê que somente os trabalhadores inseridos no mercado formal de trabalho teriam direito a esse vale-cultura. Nós sabemos que, em função de todas essas transformações que vêm ocorrendo desde os anos 70, muitos trabalhadores estão indo para a informalidade. Nas regiões metropolitanas, observamos que 50% dos trabalhadores encontram-se no mercado formal e 50% no informal, caracterizando o elemento de exclusão.

Outro elemento complicador é que a adesão das empresas e de órgãos públicos ao programa será facultativa. Quais garantias nós teremos, caso esse projeto seja aprovado, que efetivamente as empresas optem pela adesão ao programa?

Segundo dados do IBGE, 20% dos municípios do Brasil têm até três equipamentos culturais; 53 municípios têm todos os tipos de equipamentos culturais e juntos esses municípios possuem 45,707 milhões de habitantes, concentrados nas regiões Sul e Sudeste, cerca de 26% da população do Brasil: número bastante reduzido. 17 municípios dos 53 citados são do estado de São Paulo e os outros são capitais de estados, o que nos mostra que até nas cidades médias há um descompasso em relação ao número de habitantes e equipamentos culturais. Ainda tem 153 municípios brasileiros que não possuem qualquer tipo de equipamento cultural. A população total desses municípios soma 128 mil pessoas, um contingente bastante significativo de pessoas que não têm qualquer possibilidade de acesso. Como que essas cidades com déficit desses equipamentos teriam condições de atender a essa expectativa dos trabalhadores em relação à cultura?

Outra crítica que faço ao projeto é que o valor unitário de cada vale será, no máximo, o valor relativo a 10% do salário mínimo. Sabemos que hoje os programas culturais são muito caros. O trabalhador com esse vale vai continuar a ter dificuldades no acesso aos espetáculos. Até mesmo porque, a família deve acompanhá-lo.

Enquanto um paliativo é válido, mas não como uma política de cultura. Tem uma série de elementos que precisa anteceder a esse processo de inscrição do vale-cultura, para que realmente a cultura assuma esse caráter democrático. A cultura tem de chegar onde o povo está. Há uma necessidade de associar à democratização da cultura, outras políticas sociais, como geração de emprego e renda, educação, políticas urbanas, facilitando o acesso desses trabalhadores a esses equipamentos, como através de transportes mais eficientes ou da instalação de equipamentos culturais nas áreas mais afastadas.

Não sei se a lei chega a ser assistencialista. Acredito que existe uma lógica econômica maior motivando essa leitura que o deputado fez da questão da cultura, como geradora de produtividade dos trabalhadores por meio do aprimoramento da qualidade de vida."